A CAIXA OU PARÁBOLA DE UMA SEPARAÇÃO

Era uma vez uma Mente altiva que se achava bastante suficiente para si mesma. Assim, isolada, egoísta, mesmo anti-social, dizia-se caseira, MS na verdade incomodava-a o fato de que cada um pode ter um pensamento diferente, enquanto ela só acatava o que achava certo dentro de sua restrita tabela de valores.

Vivia isolada num mundo particular de construção partida e quando socializava sempre se mantinha defensora da verdade, da sua verdade. Tudo ia bem até quando, num descuido, viu, numa tarde de primavera nordestina (céu azul, mormaço e flor só de mandacaru) um Coração sorrindo, ficou tão desconcertada que esqueceu de enxergar a essência daquele exemplar – na verdade mortal e falho.

Aproximou. Viu as diferenças, viu o perigo, que haveria de descer para encontrá-lo, mas decidiu brincar um pouco. Quanta alegria o Coração lhe deu... Música, piadas, companhia nas madrugadas, alento e colo. Foram felizes até o encanto arrefecer (e dizem que sempre amorna) a Mente quis encaixar o Coração: vista isso, não beba aquilo, não olhe para o fígado, aquela Mão não é boa companhia, não bata assim que isso não condiz com um decente Coração.

Começou o sofrimento: angina, arritmia, pressão alta, taquicardia. O pobre Coração, mesmo quando se equilibrava, ainda batia descompassado, a Mente o cercava com a caixa pronta e, pasmem, num deslize, vejam só, o Coração encaixotado! Cessou a poesia, a inspiração, nem um verso ( nem os augustinianos) saiu mais daquele Coração. Cara, cabelo, tudo com o jeito da Mente, com sua marca, só a alma escapou e sofria.

Anos passaram, sem felicidade. A Mente insegura ante a fragilidade do papelão da caixa e a certeza do Coração que havia vida além das paredes.

Aconteceu o imprevisto: o Coração doente começou a inchar, inchar e inchar e na busca de ar derrubou as paredes e, já nas últimas, foi tomado pelo frio do ar das madrugadas. Chorou de alívio, deixou o oxigênio passar por suas veias e fazer a faxina no gás carbônico, inspirou e expirou tantas vezes que se sentiu cansado, procurou a caixa para descansar, mas não a encontrou mais, viu apenas a Mente com os pedaços de papelão na mão, tentando desesperadamente colar, consertar, costurar; com gritos, acusações, ameaças que na verdade assustaram o Coração convalescente que sofria por existirem frutos desse encontro. Por talvez se sentir culpado pela insanidade da Mente.

O tempo deu uma ajudinha e acelerou o filme, adiantou a vida do Coração: foram-se as roupas velhas, as culpas antigas, as tristezas e os senões. Voltaram as risadas, a cantoria, a inspiração foi chegando devagar, o colorido estampado que outrora vestia o Coração; voltaram os versos (ainda pobres em rimas), a beleza e o vigor. As batidas ainda estão descompassadas, mas porque o Coração olhou para cima e viu uma pipa voando e saiu correndo para ver se voava também.

Quanto a Mente, que pena! Caiu isolada em seus direitos e verdades. Carrega para todo lado os pedaços rasgados da caixa, abatida e descontrolada, culpando o Coração pelas mazelas do mundo, gritando a plenos pulmões que o ele é um bandoleiro, um fingido, é traiçoeiro. Mostra a prova: o papelão rasgado, arranhado, tem tudo documentado, numa atitude tão típica que ninguém se espanta, mas os que acreditam na maldade doentia da Mente é porque não conhece o Coração.

Para encurtar a estória, eu mesmo vi hoje pela manhã uma pipa em forma de coração voando no céu, empinada por dois menininhos e tive notícias de que a Mente – mesmo envenenada com a sua própria amargura, já anda por aí com uma caixa na mão, procurando outro Órgão incauto para encaixotar.

Cris, 25/09/09

CrisLima
Enviado por CrisLima em 26/09/2009
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