A outra tia

Ela está em mim, mas eu não sei onde, não sei onde se esconde a outra tia, se por desvãos, se por dez vãos, mil vãos, todos vãos, não importam, a outra tia se esconde, eu não sei onde, ela não sabe onde, mas está em mim, fala por mim quando não estou em mim, responde por meus atos impensados, brinca com crianças espontâneas, pula, canta, dança, representa, mas grita de medo de si quando se percebe no corpo de outrem, a outra tia tem um grito agudo, um grito aflito, um grito fino, ela não consegue escutar seu próprio grito, a outra tia é surda a si mesma, atende a vozes de não se sabe onde ou não se sabe quem lhe sussurra palavras de ordem (sem progresso), a outra tia ouve as vozes com vontade de comê-las e arrotá-las na cara de quem as fala, a outra tia é mal educada, suja e displicente e todos a adoram por isso, todos sem exceção, até as exceções se houvessem adorariam a outra tia, principalmente as exceções, e tudo recíproco, a outra tia também adora a todos, a outra tia beija, nina, embala, põe todos para dormir como uma tia (!) solteirona sem filhos a quem cuidar, sem marido a quem cuidar, tio e primos ausentes, mas a outra tia os inventa e nomeia, são tantos que nem ela mesma consegue contar ou se lembrar quantos, ela não se dá conta de que seu amor é tão grande em acúmulo que não faz idéia do quanto que já dispensou, a outra tia chora quando implica que não tem ninguém e acha que tem sempre que recomeçar do zero e zero é algo que faz a outra tia chorar, zero toca fundo na alma da outra tia, ela sente que sem ser ela, ela não é ninguém, ela sabe que está em mim, mas ela ainda não sabe algo, e quando ela souber disso aí é que vai ser choro e vela, como os outros não dizem, mas deveriam dizer, choro e pranto e ranger de dentes, como não deveriam dizer, quando ela souber ela vai entrar em desespero, vai querer atentar contra a própria vida, vai sumir por uns tempos, vai mudar de nome e cidade, vai mudar talvez até de identidade, aquela que ela nem mesmo tinha, vai fazer outra(s) coisa(s) da vida, pilates, tai chi chuan, i-ching, yan ping etc e vai esquecer seus sobrinhos e passar os dias e as noites num quarto/sala qualquer, cheio de sacos e latas e caixas vazias de comida delivery e/ou para microondas, porção para um, espalhados por todos os cantos do apartamento, e ninguém saberá onde se meteu a outra tia quando ela souber isto, que é o que a outra tia mais teme ainda que ela não saiba ainda o que é, o que seja, que seja assim, a outra tia vai surtar, vai ficar louca, vai para o meio da rua, tirar saia, blusa, calcinha, sutiã, maquiagem e peruca, a outra tia vai se desconstruir inteira, plena, absoluta e resoluta, quando ela souber que não sou eu.

Novembro, 2009

Para os meus amigos.

Teco Sodré
Enviado por Teco Sodré em 09/11/2009
Reeditado em 09/11/2009
Código do texto: T1913756
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