e mais rasuras...

*Hoje pensando bem, eu acho que foi coisa demais. Não que eu tenha saudades, nem pretenda um tardio revival apático e amarelado. Depois desse tempo, pouca coisa mudou e minha vida continua o mesmo torvelinho de dias e noites e rotineiros acontecimentos, uma ou outra vez pontuada por uma lembrança sua que, no meio de uma profícua noite de sono, me alfineta e desacorda. A você, que foi meu último anteparo para os dias cinzas, só pediria uma despedida na desmedida sentimentalidade pueril dos amantes não amados.

Eu me contentaria com um tchau do segundo degrau do ônibus na rodoviária, quando você metido naquela camisa do fluminense de três campeonatos atrás, copo plástico com café na mão, limpava os dentes com a língua e pensava: o que será que eu quero com essa mulher? Depois disso eu chegaria em casa, me livraria da mochila velha que já me levou a tantos paradeiros improváveis, e aliviaria a alma com um telefonema tímido e trêmulo. E um tanto impessoal. Nada mais. Amanhã um amor novo a gente inventa, mastigando a carne rançosa da véspera e acreditando ser um belo bife de vitela.

Lançar-se a um risco, a uma fenda, a um precipício dá nisso. Uma queda livre, kamikase, sem pára-quedas para aprender a voar. Nunca voa. Para cair, é preciso apenas um pequeno atropelo, uma pausa semibreve no falar, um comentário fora de hora, uma insensibilidade teatral, uma vergonha confessa, um desacordo a respeito de letra de música e pronto, lá está você lançado para fora da raia, arrastando seu nariz na poeira do chão e sucumbindo às vais da torcida. E descobrindo tarde que de nada valeriam os esforços para ser um pingente delicado, ornamentando a vida dele. Bem, como se não contasse o meu frenesi de todo sábado e todas as coisas que eu empurrei para dentro do armário (e de mim) para não vê-las mais; tranquei lá dentro as obrigações, o passado, as costuras, traumas e outro tanto de badulaques que me pesavam nos olhos. Tanto tempo passou... Muita gente também passou, mais convites, cinemas, viagens, teatro experimental, biritas, cigarro, sexo com/sem compromisso e outros incontáveis placebos.

As noites, as promessas, sobretudo as possibilidades eram boas de sentir, mas quero dizer que aquele aperto já me deixou e a claridade novamente invade a casa, por mínimas que se apresentem as frestas. Seu rosto, já se oblitera na fumaça dos carros, na neblina das quatro e meia da madrugada quando fumo um último cigarrinho para espantar o vazio. Aquele desassossego, aquilo tudo se foi. Quando você, misteriosamente saiu de cena foi que eu me encontrei, e justamente na ausência de aplausos.

*este texto foi escrito aproximadamente um ano após o meu primeiro texto publicado aqui, cujo título é "rasuras".

Jan Morais
Enviado por Jan Morais em 27/07/2006
Reeditado em 27/07/2006
Código do texto: T203262