Pena Que Você Não Veio (EC)

Pena Que Você Não Veio (EC)

Pena que você não veio. Se tivesse vindo, poderíamos ter tido filhos. Não muitos, o suficiente para ficarem impressos em nós, e nós neles. Tentei te avisar. Seria lindo, teríamos tido ciúme um do outro, nem sempre, o suficiente para lembrar que o amor incendeia mais de um hemisfério. E em meios as andanças, essas lembranças iriam se transformar noutras, depois noutras, então noutras, e nosso bem mais precioso estaria brilhando como uma chama num quarto escuro, como um vagalume nos arbustos, como o Pireu orientava os navegantes na aurora dos tempos, como a própria aurora orienta os seres todos, a cada vinte e quatro horas.

Você não veio, e nunca me foi possível atinar devidamente o porquê da sua ausência. Talvez nunca tenha tido coragem para indagar mais fundo. O fato de você não ter vindo me roubou o doído prazer de sentir sua falta nas noites mal dormidas, nos dias mal vividos, mas, repare, jamais na soma das expectativas não correspondidas. Isso não. Porque você não veio.

Se tivesse vindo, com a repetição dos sucessivos verões, iríamos afastar nossos corpos depois do amor, sem a suspeita de que esse gesto fosse uma demonstração de antagonismo ou desafeto. Porque viriam os invernos, e, dado o acréscimo dos invernos, nalgum momento, cobertor algum supriria o corpo quente, conhecido, familiar, que se encaixa no sono profundo, que respira no mesmo compasso, que levanta de madrugada para tomar um copo d’água ou comer uma ameixa.

Você não veio, e portanto não colecionamos aniversários. Você não veio, e não guardamos os canhotos das entradas de cinema, teatro, shows. Você não veio, e nossa vida espetacular de caminhadas nos feriados, de macarronada aos domingos, de fazer contas no final do mês, de ir ao parque bem antes das crianças nascerem, bem antes de vermos juntos os filhos crescerem, nada disso aconteceu. Nem poderia ter acontecido. E assim, perdemos o indizível momento de juntos traçar metas, metas grandiosas sendo debatidas, com um copo de chope em uma das mãos, a outra entrelaçada, um debate entusiasmado qualquer, numa calçada qualquer, quando seríamos jovens e ainda cheios de planos.

Sim, aí está a cena, nós, ainda com tanto a viver. Hoje, posso afirmar que seríamos contrariados tantas vezes, que estaríamos calejados. Que veríamos tantos sonhos desfeitos e tantas expectativas não consumadas, que hoje, riríamos à farta dos percalços, como riem os intrépidos que venceram mares bravios, e dormiríamos como os abençoados, que no tempo certo aprendem com suas experiências.

Se você tivesse vindo, eu teria criticado a sua mãe. Não abertamente, é claro, e nem em todas as ocasiões, mas teria abraçado seu pai em todos os natais, e, nos momentos de medo, mas não só nos momentos de medo, teria te abraçado tão forte, que ali, naquele instante, o mundo inteiro perderia sentido. Acredite, esse abraço teria acontecido tantas vezes, que nossas vidas perderiam o sentido sem ele.

Sim, que formidável possibilidade não passou por nós. Porque, se você tivesse aparecido, justamente você e não outra, especialmente você e não outra, ora, minha cara, não seria uma noitada ou uma aventura de três meses, que teria saciado essa fome de construir cada detalhe de um caminho ainda não traçado, um caminho por vir.

De fato, a existência é grande, tão grande quanto as possibilidades e igual a própria eternidade. Talvez tenhamos nos livrado de boa, é bem verdade que não guardo mágoas, é bem possível que nesses termos, tenhamos outra oportunidade. Até lá, entre um sopro e outro que perfuma certas águas passadas com a essência da melancolia, nada me impedirá de dizer, mentalmente, pena que você não veio.

http://encantodasletras.50webs.com/penaquenaoveio.htm

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 18/02/2010
Reeditado em 17/12/2012
Código do texto: T2094490
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