Sedimentos Vulcanogênicos

Deparo-me, de repente, com meu passado e fico comovida com o que fui como se fosse outra e não eu, outra que tem em minha carne marcas fortes e cuja existência carregou de lembranças distorcidas a memória desta eu que cá se encontra.

Apaixonei-me, desconhecendo a razão. Pela aula, pela inteligência, pela beleza, pela matéria, pelo que emanava dos gestos, por tudo isto e nada que se junta e confunde e perde. Aproximei-me. Pelas palavras, pelas conversas, pelos cafés, por todas as trocas que não diziam e escondiam atrás de si o que de fato era aproximação que não essas próprias ações. E de pouco em pouco reconhecia e, ao mesmo tempo, sufocava o que era uma paixão irrefutável, por meio da crença na literalidade de minhas comunicações que no fundo permaneciam como farsa agradável.

Era agradável estar perto e agradável discutir, parecia-me de tamanha fluência e naturalidade a situação que de algum modo nos vinculava que eu era arrebatada pelas circunstâncias em ondas fortes e pela vontade de que exatamente assim fosse. Desejava nalguns instantes que fossem intermináveis. Divertia-me de um modo singelo tentar convencê-lo de qualquer coisa desimportante e sofismava durante horas a fio apenas para mantê-lo atento a mim, para que não se fosse depressa com aquela sensação de que meus sofismas eram supérfluos porque do silêncio subjacente à presença dos corpos havia uma energia em ebulição. E era por temor deste mesmo silêncio que eu cortava-o tolamente com qualquer palavra, e por temor que o mantinha à distância suficiente através de meus vocativos que desagradavam.

Convergiram todas as coisas à aproximação excessiva. Naquele dia chovia e eu sabia que não poderia mais sofismar. De repente eu estava ali e quis me expor e estava nua apesar de minhas roupas. Doía-me um pouco que fosse o fim da encantadora farsa. E não pude enfim quedar sobre a plena proximidade integradora que talvez mesmo fosse impossível. Aí as palavras que não mais queria perto sobrevieram atropeladas. Aí a noite emendou-se no dia e eu sentia falta de ti que estava comigo. E quando meus olhos se fecharam tive uma saudade aterradora por vislumbrar dali por diante, em que algo se rompera irreversivelmente. Então quis permanecer e não podia, permanecer ali segurando-te através das mãos para que não se fosse o que estava morto. E falei-te ainda depois porque não sabia o que fazia, as palavras substituíam-me tristemente.

Sofri um pouco porque perdera algo sem ter clareza do quê, porque não pude perceber o que eu queria exatamente. Não se pode resgatar o passado – mesmo o mais íntimo – senão por uma construção fictícia. Relato-me então o que esta eu possui da que se perdeu. A substituição, bastante densa e profunda, de mim por mim resulta de vulcões com lava e erosões por vento e chuvas e, de todos os fenômenos, se formam algumas rochas. Minha história tem um pouco dos fósseis que posso explorar. Minha história tem ainda mais da transformação, constatável sensivelmente por mim, que as coisas provocam. As minhas paixões são intensas e permanecem latentes, expressando-se em ondas invisíveis de energia vital. E eu as estimo porque assim, exatamente como são, incompreensíveis, indizíveis e viscerais, elas me formam e propagam o esparramo sobre a terra em que minhas partículas estarão dispersas para sempre.

Clarissa de Baumont
Enviado por Clarissa de Baumont em 07/04/2010
Reeditado em 13/04/2010
Código do texto: T2183305
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.