a odisséia do instante

Às cinco da tarde o galo canta, é da tarde mesmo que o galo canta, e depois outra vez, e toda vez como se estivesse avisando que o tempo está acabando, a hora chegando... mas é só uma desconfiguração sonora no espaço de se ouvir.

A ave engravatada, a rigor lança seu ruído na noite, fica me corujando, sem deixar que eu durma com pensações surreais.

As vozes discorrem soltas lá fora no beco e narram pequenas histórias, interseccionadas com algum tremor aqui dentro.

As vozes dizem que tem morador novo aqui. As crianças ainda brincam na escuridão, pisam em vidros e choram como quando nascem, um berreiro cortando feito flecha o ar que succiono sôfrega e porque é assim não sei, também ouço de longe pessoas fazendo amor no outro quarto. Adolescentes jogando dominó no cômodo de cima, riscam o chão com as pedras a sorte ou azar, gravam seus destinos com brincadeiras soltas até se cansarem... as vozes, a respiração vão já dentro do sonho.

A umidade quente do quarto me amolece... deixo a luz do banheiro acesa, hoje não suporto a escuridão, um feixe de claridade se infiltra em meus olhos ainda riscados de lua, lâmina penetrando a polpa pulsante viva de meu ser. Olho cíclope gravitando pelo quarto, pelo beco, pela janela, pela vida afora... e dentro de mim, toco com a palma da mão quase num gesto de agarrar a coisa o tempo da coisa a parede e meu olho de ver as coisas faz com que eu corpo pensamento viva todas as histórias ali realizadas. Possível isso? Nada sei, sei do tempo que me encontra de solavanco com as coisas mesmo impalpáveis, realizáveis... do tempo que se apresenta em coisas em mim em ser eu em mim mesma, meu olho cíclope se assusta, é que olho demais as coisas, os seres e seus sentires, o mundo chega perto demais de mim... tanto que fico tonta. Tontinha, eu.

Agora fico na penumbra da superfície do sonho. Então, a coletânea de falas e significâncias infiéis não se ocultam.

Amanhece. Alguma luz nova reflete nos vãos da janela, e é uma luz de manhã solitária, uma canção silenciosa, mas que também é uma amarelo alegria. E nasce em mim uma sensação longínqua de estar voltando para a doçura do colo de minha terra, minha casa. Meu ser em mim. Levanto lentamente, ando pastosa até o banheiro, e nua começo a acordar, penso e começo a querer dizer coisas, e digo silêncios como um espírito lúcido e dançarino sobre as águas. Cumpro a simples e comum odisséia do instante.

Alessandra Espínola
Enviado por Alessandra Espínola em 20/04/2010
Reeditado em 24/05/2010
Código do texto: T2208872