outros fragmentos do Ciclo dos Símios

livros

não recebi nada nos dois últimos meses, por não entregar duzentas páginas como o combinado, estava atrasada. no décimo capítulo não dariam o emprego a Carlos com a cara estourada, ela trabalhava muito, ganhava pouco e estavam na lona. beberam a garrafa de vodca em grandes goles. ela vomitou a manhã toda, quando melhorou escolheu seus melhores títulos e vendeu para um sebo. garantiu jantar e bebida naquela noite.

dados

lançaram-se extremos sobre o veludo azul, fácil demais para ser real. “seis, dois”, gritava o crupiê. suspiro do que não veio. no décimo quarto capítulo, perceberam que os dados são viciados derrota. um era seis e o outro nunca caía com um, ambos infiéis provocadores. se juntos somassem sete ou onze não estariam entregues aos jogos de sedução nem ao dilema da perda.

peixe morto

já te pedi algumas vezes para que não me olhasse assim, esse seu jeito quase me dói, sabe bem de meus defeitos, não ouso enganar ninguém. hoje posso ficar mais um pouco só pra te agradar, vir deitar mais cedo, encher seus ouvidos de sonhos e seu corpo de amor. no vigésimo oitavo capítulo, deixou o sol dormir um pouco mais e sustentou os medos dele entre seus seios, sem promessas posteriores. era mais fácil amar de verdade no passado que no presente. lá no passado, como lembrança trancafiada em algum canto escuro, o amor é garantido por ser pretérito. ontem deparou-se com vários olhos como os dele boiando na lagoa Rodrigo de Freitas.

baixio das bestas

datilografou três possíveis desfechos para a cena, o personagem permanecia caído no chão. a malhação do bode expiatório cabia bem à ocasião, as pessoas se acalmam ao extravasarem suas insatisfações, mas por hora não descartaria os pregos e nem a arma de fogo. ela indagava-se diante da humanidade que crucifica seu salvador é melhor dar a outra face, abotoar nele o paletó de Judas ou deixar que ele resolva o problema sozinho?

liberdade

inspirei como se fosse só pulmões e expirei como se botasse até a alma para fora. a consciência berrava ao mesmo que me entregava em gozo silencioso.

no vigésimo nono capítulo, Carlos colocou o cano da winchester na boca e sentiu o gosto do chumbo. em algum momento ela o comparara a Hemingway, então se sentiu em cuba, quase revolucionário, num desespero que beirava crença. ao menos agora a consciência também se calaria.

buraco negro

datilografei mais de cem páginas perseguindo um personagem que tentei manter à distância. tarde demais, já era um objeto em órbita de colisão sem escape, atraída de volta à região de onde fora gerada. poderia me perder no céu de sua boca, feito o sentido das palavras voltadas à verborragia incrédula de quem não crê em semiótica. no trigésimo segundo capítulo descobre que nem as estrelas vivem para sempre e que perdera por completo o controle da situação, encontrava-se em colapso caindo sobre si mesma.

aprendiz

fosse um misto de insegurança e certeza, nem isso. aquilo era torpor cego, loucura. personagem comandava certeiro e brotava em cada linha mal feita, em cada palavrão dito enquanto ele dormia. determinada a fechar aquele ciclo digitava calada e faminta pelo verbo. no trigésimo nono capítulo, não era Carlos que pulava a janela e sim a realidade nua, violenta e sem alegorias, aprendia com ela.

Larissa Marques
Enviado por Larissa Marques em 03/05/2010
Código do texto: T2234807
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