Em horas cor de silêncios e angustias

"(Vim hoje aqui parar por obra dum destino oblíquo…)"

Álvaro de Campos

***

Nas horas em que o fim do dia traz cores de silêncios e angústias

esqueço-me neste cais, sem cais, desta Lisboa engalanada

e no segredo dum cigarro apagado

aqui fico horas incontáveis em mergulhos de pensamentos infindáveis

a pensar em nada.

Mergulho ao fundo do nada de águas cor de azeite revoltadas

no meu cais, sem Cais, de onde outrora partiram navios

que se fizeram aos Mares do Oriente e o Índico passaram

e para essa América fora e para os dias longínquos de África

na ânsia dos vis minérios mil Pacíficos navegaram…

Marinheiros desta terra se fizeram para essas vastas paragens

de recônditas paisagens

de inúmeras lendas e mistérios…

Ah! essas praias longínquas de tropicais sabores!

Este cais visto de longe e em pensamento tão perto,

este cais em tempos tão cheio de vida e hoje tão deserto

não é o cais de Álvaro de Campos com guindastes a chiar

com cheiro a óleo queimado e o suor dos sovacos dos estivadores.

Este cais não é o cais da Lisboa desses tempos dos marçanos…

(sim, porque hoje já não há marçanos nesta Lisboa enfatuada

por detrás dos balcões da moda onde flutuam mini-saias

que ao mínimo movimento para além do vertical

deixam ver a cuequinha rendada ou de calça justa e transparente

sob a qual já nem se adivinha sequer o minúsculo fio dental…).

Não é o cais da Lisboa dos pregões, nem dos marçanos, repito,

nem dos marçanos que subiam a rua de S. Domingos à Lapa, calcetada

carregando aos ombros o cabaz das compras da madame

que seguia à sua frente toda emproada.

Não é o cais dos letrados que em fins de dia aqui vinham inspirar-se

para além da leitura do jornal da tarde que hoje, quase, já nem há.

E quanto aos letrados, esses (coitados dos letrados…),

arrepia ver quando trocam em seus escritos, mal pontuados,

os “à” pelos “há”!).

Quase nem sabem ler

os letrados que de qualquer jeito estes governos fazem doutores

a trocar o “oxalá venhamos a ter” por “oxalá vaiamos ter”.

Não é o cais do queixume das gaivotas, que já é outro,

à espera da escolha da pescaria abundante que não houve,

não é o cais aventureiro e sedento das conquistas que já teve.

Oh! dolorosa instabilidade,

oh! perversa incompreensibilidade,

deste intemporal universo da noite à espera que se faça dia

neste meu cais, onde me sento, medito e descanso, de injustiças tão cansado!...

Alvaro Giesta
Enviado por Alvaro Giesta em 30/08/2006
Código do texto: T228851
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