Um dia




Eu estava ali, deitada. Sabia que podia me mexer, apenas não conseguia. Fiquei pensando se haviam tirado os meus sapatos.

Eu abria os olhos e olhava. Via um e via outro, mas eu tenho certeza, não estavam todos juntos. Era um de cada vez, mas parecia que o tempo estava parado. Eu forçava os olhos a ficarem abertos, mas não conseguia. Acho que eu abria, via o que tinha que ver e dormia. Tornava a acordar, a ver o que tinha que ver e novamente dormia. Mas eu não queria dormir ali e por isso pensava que estava só piscando os olhos: piscava uma vez, via um. Piscava outra vez, via outro. Alguns nada falavam: são assim, na essência. Outros diziam alguma coisa, riam para mim e eu pensava: sei que não estou morta, estou apenas em exibição. Como um faquir ou a mulher barbada. Lembrei-me de meu pai, deitado em uma maca, dentro de ambulância. Dizia, está parecendo o meu enterro, quero ver como é, os carros seguindo o carro da funerária. Pensei: se estar morta for assim vou achar muito engraçado. Senti uma vontade louca de mostrar a língua, mas estava sem forças até para movimentá-la.

Onde está aquele cheirinho bom do álcool que esfregaram em meus pulsos? Acho que nessa hora que nem sei mais que hora fora eu ainda falava, pois me lembro de ter dito: cheiro booommm.Ou será que só pensei e nada disse. Senti vontade de pedir: esfrega de novo o álcool em meus pulsos, mas desisti. Estava difícil falar qualquer coisa compreensível.

Eu continuava ali, abrindo e fechando os olhos. Aquilo não acabava mais. Eu abria os olhos e em resposta alguém falava alguma coisa, eu fechava e um silêncio profundo calava tudo, os carros não passavam na rua, os telefones não tocavam, os relógios não batiam. Cuco, cuco, a aula acabou, tenho que ir embora, tenho que ir para casa dormir, estou com sono, muito sono, um sono esticado que não acaba e nem é mais hora de ter sono, estou acostumada, sou da noite, durmo tarde, sempre, só porque me levantei muito cedo, não se justifica.

Tem alguma coisa em meu braço, ele está pesado, ei solta o meu braço. Soro? Eu não sabia que soro era bom pra sono. Soro, sono, soro, sono, outra vez? Três? Três frascos de soro, será pra que? Pra dormir ou pra acordar? Não está valendo nada, já que nem durmo nem acordo, fico só nesse abro e fecho os olhos. 
 
Ele me beliscou, essa não, ele me beliscou. Abri os olhos e o reconheci. O que ele está fazendo aqui, Santo Deus? Ô droga, nem posso dormir em paz, por que será que o chamaram? Ele não é um sonífero, é só um endocrinologista, acho que alguma coisa está acontecendo e eu nem estou desconfiando. Será que estou morrendo? Não, acho que não: a) não estou sentindo dor. B) não estou aflita. C) não estou com medo. Só estou com sono, mas que raio, parem de mexer comigo, me deixem ir pra casa, dormir...
 
Uau!!! Acho que agora vou conseguir, mas eu não queria dormir aqui, mas estou caindo no mais profundo sono, estou despencando morro abaixo, estou sendo puxada, aceleradamente para não sei onde, mas quando eu chegar lá embaixo eu vou dormir, dormir... Lá embaixo? Mas o que tem lá em baixo? Lá embaixo é o inferno, as profundezas, acho que é pra lá que estou indo, está tudo esquentando, fervendo,preciso voltar, preciso acordar, ai meu Deus, por que colocaram esse cobertor em cima de mim, está quente, muito quente, que susto! Pensei que estivesse indo de ponta cabeça para o inferno, o céu é pra cima e eu estava caindo, caindo...

... e agora estou voando, voando... como é bom voar...Eu estou voando e não estou em nenhum avião, estou voando e não tenho asas. Ou será que eu tenho? Mas, o que isso importa? Sempre quis voar e estou voando, como um passarinho, uma águia, um anjo, um urubu...
Anh! O que? Ir embora?Para onde? Bem, se conseguirem me levar, eu vou. Dormir em minha cama vai ser bem melhor, bem melhor... 

(da série: De trás pra frente ou de frente pra trás, tanto faz, leia como lhe apraz)