Visita ao Abatedouro

Ouvi hoje no buteco uma história

Que não posso deixar de passar adiante

Um conhecido meu que falou desse causo

Que vou contar pra vocês, num instante.

Dizia que um dia, um deputado do estado do Goiás

Quis fazer uma ilustríssima visita ao abatedouro mais antigo daquelas bandas

Que existia quase desde os tempos de capitania.

Agendou a visita e conheceu o rico dono

Que tinha desde hectares de terra valiosíssima

A caminhonetes maiores (só um pouco) que seu ego.

E o deputado quis ver onde o gado era abatido.

Um celeiro equipado com o maquinário mais moderno

Que um abatedouro futurista poderia ter

E eis que o deputado se intrigou

Com uma tapera que ficava ao lado do celeiro

Na porta tinha um preto veio, cego de um olho e bom do outro

Mas o olho bom era tão azul que parecia ser o cego (e vice-versa)

Que sorriu de canto de boca quando ouviu a voz do gado

Que tinha acabado de conhecer a morte

O deputado se sentiu ofendido, perguntando ao coronel quem era o preto veio

Que riu da desgraça do bicho que tinha acabado de se cagar na esteira

O coronel disse que ele era neto dos escravos

Que viviam desde sempre naquela fazenda.

O deputado então se aproximou e perguntou:

- Por que é que você tá rindo, preto véio

Da desgraça do bichinho que acabou de padecer?

O negro o olhou com o olho bom

E fez pouco caso com o olho cego

Antes de proferir (ou desferir) essas palavras:

- Num tô rindo de mardade não, seu moço

Muito menos de gosto porque aquele boi morreu

Tô rino porque lembrei do meu pai

Que era quem matava os boi aqui, na época da marretada

E que voltava pra casa ensangüentado

Dizendo pra gente que o sangue era das caipora que ele botava pra correr.

Tava rindo da minha mãe que aprendeu a ver o futuro

Porque cantava pra gente sempre uma canção cabocla

Bem na hora em que meu pai marretava as cabeça

Dois boi que ia entrando, de um por um

No celeiro que meu pai nunca deixou a gente ver pó dentro.

Dei uma risadinha tímida porque ninguém sabe

Que ele ensinou pra gente que carne era mato e mato era carne

E eu vivi a vida inteira comendo couve

Achando que era carnívoro.

E o sinhô vem aqui com essa carne estragada entre os dentes

Que se estivesse escovado com carvão, tava limpinho

Dizê que eu gosto de vê bicho sofrê

Sou preto véio sim, e muito véio

Véio desde antes de vossuncê nascê

E desde aquela época já sabia que meu pai matava

Pros filho de gente rica que nem o sinhô, podê comê.

Rafael Estevan
Enviado por Rafael Estevan em 06/07/2010
Reeditado em 07/07/2010
Código do texto: T2362450
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