Isso que se chama saudade

São muitas as músicas, muitas mesmo, por isso ela parou de ouvir música, porque era condicionada à lembrança remetida por elas (as músicas), e por isso não tinha mais passa-tempos, já que não assistia televisão e no computador seria impossível não colocar Jack Johnson ou Jeff Buckley, decidiu passar o resto do feriado dentro do quarto, mas o quarto tinha as paredes escritas e desenhadas e tinha também colagens e nomes e fadas e fotos e eram todos objetos de lembrança, não tão fortes quanto as músicas, mas eram também, de seu próprio modo. E precisava achar refúgio até segunda feira, quando pegaria o ônibus-lembrança e passaria direto pela rua das palmeiras em direção ao Parque Lage, passaria pela rua da padaria, choraria um pouco e saltaria no próximo ponto, entrando no parque e passando pelas mini-florestas-imaginárias e pelas borboletas-fadas e pelos lepidópteros e lagos e peixes e torres e micos-leões e choraria um pouco mais, tampando o rosto vermelho, molhado e inchado.

E até lá, até lá... Até lá tinha que esperar e esperar tentando não lembrar, tentando não ouvir música, tentando não entrar no quarto, e por isso foi para casa da avó, e como já era de noite, subiu no mirante para tentar esquecer, mas o mirante também era lembrança e seus olhos se encheram de lágrimas, mas não caiu nenhuma, nenhuma, porque ela não queria chorar, não queria lembrar, desceu então e foi assistir um filme, na televisão mesmo, porque o cinema era lembrança quase tão grande quanto as músicas, e viu, viu... Viu Before Sunset, filme repetido, já tinha visto, e nele a música, mais músicas que remetiam a Ele, A Waltz for a night, e choro, mais choro, correu pro banheiro, guinchos esquisitos, cara afogada na pia, rosto molhado refletido no espelho, e foi p'ro telefone, ligou interurbano... Longe, tão longe, disfarçando a voz para parecer natural.

Barbara Coimbra
Enviado por Barbara Coimbra em 09/09/2006
Código do texto: T236378