CORTE

Posso ver a pele lisa, reluzente, pedindo por cicatrizes e por dor, há um céu vermelho sobre mim, e tudo está a ponto de explodir.

Posso sentir a incisão em meu corpo, sinto a dureza do metal já atravessando as camadas mais profundas de pele. Tudo é vermelho, e a dor é recompensa.

Posso imaginar a beleza dos meus novos amigos, sua pena pelas minhas novas marcas de agonia, sua atenção pelos curativos avermelhados de sangue, que escondem aquilo que lhes interessa, que é o bizarro, o anormal, que é minha pele dilacerada e meu feito, para sempre indicando a loucura.

Eu ocupava meus dias a caminhar pelas ruas, às vezes acompanhado de um mesmo amigo, aquele último que me restou. Ainda me ponho a pensar se andava comigo por algum tipo de afinidade, ou por simplesmente não lhe restar outra alternativa, ou quem sabe fosse por algum tipo de convenção ridícula que ele tinha medo de transgredir.

Enfim, caminhava sempre sob um sol forte, um sol que me queimava a pele e me trazia o delírio e o cansaço após poucos minutos de exposição.

Certa vez decidi caminhar até onde não houvesse mais movimento, onde tudo fosse estático e eterno.

Passeei por diversos mundos, onde fui agraciado pelas mais saborosas sensações.

Não senti sede ou fome, muito menos o cansaço típico das caminhadas sob o sol.

Eu não possuia nenhuma bravura, apenas levava a um local mais limpo e lúcido minha existência, queria atravessar fronteiras e encontrar monstros, fugir de fantasmas, escalar montanhas para finalmente cravar minha bandeira em meu futuro e tranquilo leito de morte.

O vento, sem aviso, surge como um mensageiro das vontades que me são alheias, e que fui tolo em menosprezar.

Ele me circunda, parece sorrir, atinge-me frontalmente, e em certos momentos, desmancha-se em meu rosto. Eu paro um instante e penso em apenas sentí-lo.

Em pouco tempo, sinto algo estranho em meu corpo, ele parece estar perdendo sua vitalidade!

Olho para meus braços, e o vento parece estar levando minha pele, que agora transforma-se, aos poucos, em pó.

Não demora muito para eu enxergar-me descaracterizado, sendo devorado pela impossibilidade da efetivação de meus objetivos.

Meu corpo dissoluto pelo ar, forma um redemoínho vermelho e caminha pelas terras que eu já havia vencido, ele leva a todos a mensagem que falhara o aventureiro, que ali encerrou-se seu sonho.

Um segundo antes de desaparecer por completo, vejo ao longe alguém, mas esta pessoa não pôde ver-me... como eu gostaria de avisá-la de minha existência naquele local ermo, convencê-la de quanto fui feliz, mesmo após sofrer o castigo final do tempo. E quem seria esta pessoa? Traria ela até mim os trunfos da vitória? Ou seria mais uma a zombar de mim?

Nunca saberei.

Já não existo, agora tudo poderá transcorrer normalmente, já não há mais alguém que se opõe ao destino entregando a própria existência aos sonhos.

A pele anseia pelo corte, como anseia o homem pela glória,

A pele desgasta-se, amolece e muda de cor através da escuridão do tempo,

A pele apodrece e passa a dissolver-se para formar uma nova leva de seres errantes.

O corte pertence ao homem, e ele há de sentí-lo em sua pele um dia.

M.A.S.P.