Boi forte

Éramos cinco antes da travessia. Pai, mãe, eu e dois manos. O caminho era duro; de dia era muito sol rachando o couro; de noite não; de noite era mais a falta de comida que atacava mesmo. Pai e mãe tinham experiência, dormiam rápido que era pra não sentirem dor, mas a gente não; a gente era pequeno e burro, ficava acordado incomodado com o ronco do pai e da mãe e gemia virando prum lado e proutro, gemia até dormir de tanto embalo do ronco das nossas barrigas próprias. Doía.

Acordar não era difícil porque o sol queimava as pestanas. Difícil mesmo era levantar. As pernas nem sempre queriam e o sono quase parecia comida.

Os dois mais pequenos tinham muita sede; se mexiam demais meninos burros. Eu andava reto, sem balançar, sem nem pensar pra não gastar força; aprendi com pai que até olhar pra frente é caro; olha pra baixo que o queixo apoia a cabeça no peito! Mãe também tinha seu jeito e puxava a gente pra perto quando um fio de sol invisível tirava a gente da rota.

A gente tinha que travessar muito chão. Pai dizia que travessa era coisa séria. Só boi forte chega. Mãe discordava, mas não dava palpite. Calor!

Pai e mãe nem notava porque dormiam primeiro, mas a gente pequenos tava dormindo cada vez mais rápido. Não era prática não, era fraqueza de delirar, tava sendo mais fácil dormir no primeiro gemido. Eu menos, os dois outros demais.

Noutro dia Pai contou que boi não era um não, era a família. Mãe fez sinal positivo que também achava, mas depois reprovou com os olhos o desperdício de água da boca; é que pai sempre babava nas palavras na gente.

Pai insistiu que pai era as patas, filhos eram as costas, a barriga e o peito do boi e que mãe era a cabeça. Mãe sorriu da comparação. Eu também me ri, mais por cópia da mãe, os dois menores se gargalharam fazendo chifrinhos com os dedos na testa apontando pra mãe e tossiram seco depois.

A noite depois de dormir pai e mãe os dois pequenos menores fecharam os olhos cedo; menos eu; a noite toda; faltava algo na noite, tava silenciosa.

De dia o sol levantou e puxou pai e mãe do chão seco. Só pai e mãe.

Aquele dia lambi o peito da mãe, tinha lágrima nele; era pouca, salgada e quente, mas lambi. Pai também quis eu acho, mas esperou a noite chegar. Acho que queria água mais fresca; pai mordia a mãe deitado nela; naquela noite pai e mãe também demoraram a dormir, que nem eu, gemeram e se viraram muito no chão por muito tempo.

A travessa tava acabando pai me disse. Mas passou ainda muitos dias; noutro dia a febre fez mãe querer os meninos de volta, queria voltar; pai impediu e eles se atacaram muito aquela noite.

De dia mãe tinha voltado e pai não me deixou alcançar a sombra dela.

Pai me mostrou que tinha uma ferida de faca na barriga, que tava lá desde antes da partida do rancho; me contou deitado a noite que brigou pra gente não precisar travessar a seca, mas machucou e não conseguiu conquista. Embrulhou os panos de vestir, embrulhou também a barriga e seguiu com os filhos na trouxa.

Mais um dia de andança e eu cheguei num rancho ocupado de três amarelos como eu, me deram água e me deixaram dormir com a criação em troca de trabalho. Primeira coisa que quiseram de mim foi meu nome. Gente boa de família.

Respondi que boi forte chega, mas chega magro.

Will Aziz