Já não somos mais os mesmos

Nós queremos carne

Desejamos muito comer a carne

De um porco ou talvez um suculento e enorme peixe

Mas, agora devo continuar...

Deixar que a loucura retorne de fato

Retorne e me faça querer matar

Nunca pensei que poderia concretizar esse ato

E, agora tenho certeza que posso fazê-lo.

Nós queremos carne

Desejamos muito comer a carne

Uns dos outros?

Talvez?

Por que não?

Eles são malucos e temem as cobras desta ilha

Nem sei se há cobras nessa ilha, conheço só a esquizofrenia

Mas, sei que precisamos de abrigos firmes para nos proteger ao fim do dia.

Nós queremos carne

Desejamos muito comer a carne

O Sol está se pondo e não temos muito tempo

Terei, eu, tempo?

Eis que me vem à idéia:

“Nessa ilha deserta, tenho todo o tempo do mundo”

Ninguém nos achará... Pobre de mim

Pobres crianças, enfim... Estamos imundos!

Nós queremos carne

Desejamos muito comer a carne

Andamos todos juntos, criamos um novo mundo

Um mundo de experiências empíricas e sentido abstrato

Sentido abstrato de sobrevivência de quem viveu apenas uma década

Agora, precisamos pegar um porco

Precisamos construir um abrigo

Precisamos dominar o fogo.

Nós queremos carne

Desejamos muito comer a carne

Pegar os frutos no alto, onde “os menores” não conseguem alcançar

Descobrir os maduros, por entre as folhagens

Entregá-los àquelas mãos outrora sensíveis e delicadas

Sujas, unhas quebradas, arranhadas nessa nova realidade

Depois que o avião caiu, tudo em nossas vidas novéis se transformou

Da noite para o dia, já não somos mais os mesmos nessa nova comunidade.

Nós queremos carne

Desejamos muito comer a carne

Entre trepadeiras e arbustos escorrem o nosso suor

Ouço as ondas quebrando, sinto um cheiro de jasmim

E um silêncio de sobrevivência que me incomoda tanto

Tanto quanto a irresponsabilidade dos que só querem brincar

Brincar na “piscina”, brincar no “jardim”

Espalhar-nos-emos pela ilha, em busca de que?

Nós queremos carne

Desejamos muito comer a carne

Ainda não nos ajustamos ao novo ritmo

Sentimos falta do café da manhã, do almoço, do chá, dos bolinhos

Faz-me mais falta as refeições do que a mão de minha tia e o que ela me ensina

Obedecemos ao som da concha e nos alinhamos pronto às ordens!

Ela é o nosso elo com o mundo adulto da autoridade e da disciplina

Acho que ainda não tenho maturidade suficiente para entender isso.

Nós queremos carne

Desejamos muito comer a carne

Vamos ajoelhar na areia e ficar em paz

Parar de brincar e ficar olhando para o mar

Será que, em breve, um navio virá nos resgatar?

Nesse azul que machuca os olhos, os raios solares são como flechas

E os tabus, são como moscas

Moscas que rodeiam uma civilização em ruínas.

Nós queremos carne

Desejamos muito comer a carne

Desejamos a proteção dos pais, a proteção do policial fardado

Todos nós estamos despidos, envoltos em pequenos farrapos

Arranhados, doloridos, desidratados, enquanto as pedras rolam

Enquanto a chama apaga, enquanto o medo aumenta, nós a míngua

Aqui, as coisas querem se parecer outras

Como um camaleão num tronco, preparando, ao ataque, sua língua.

Nós queremos carne

Desejamos muito comer a carne

Faremos um relógio de sol!

Que ótima ideia!

Ótima ideia para nada

Devemos fazer coisas para que nos encontrem

Calem-se, calem-se todos!

Vocês deixaram a maldita fogueira apagar!

Nós queremos carne

Desejamos muito comer a carne

Matamos um porco

Rastejamos... Fizemos um círculo...

Acertamos e caímos em cima

Enquanto, Jack nos orientava:

Matem o porco...

... Cortem-lhe a garganta e lhe tirem o sangue!

Nós queremos carne

Desejamos muito comer a carne

Calem-se, calem-se e comam o porco

Que eu mesmo matei e preparei

Como o cheiro das flores, no crepúsculo, se espalha ao redor

Vamos fazer uma reunião, nos preparar para o pior

Vocês deixaram a fogueira apagar... Dizia-nos Ralph

Enquanto eu pintava meu rosto e visualizava, ao longe, um suposto navio.

Vocês querem a carne

Desejam muito comer a carne

Em democracia o líder foi escolhido, ouçam-no tocar a concha

Mas, o fascismo impõe o medo e quer nos controlar

Façam o que ele manda, é melhor estarmos ao seu lado

Há uma revelação mística: “O mal está em nossos corações”

Não vimos nem conhecemos a serpente, mas a tememos

Tememos, pois, temos razão e habilidade para vê-la com clareza.

Vocês querem a carne

Desejam muito comer a carne

Descer a montanha fugir do fogo, se alimentar

Dê-me sua lente, Porquinho, são convexas e o fogo irá propagar

Já não há mais amarras que nos ligam à civilização

Quando a vara penetrar em suas entranhas, não grite!

Não grite, pois ele vai voltar

Sim, o Senhor das moscas não tardará a chegar.

*Baseado em: "O Senhor das moscas"

de Willian Golding (1954)

Marciano James
Enviado por Marciano James em 17/12/2010
Reeditado em 05/11/2014
Código do texto: T2677793
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