Satori do Anjo da Desolação

Anjo da desolação..

Eu não vi tuas noites solitárias em Big Sur, nem tampouco outro ser te visitou. Trinta dias choveram e trinta dias fizeram sol. Há amigos meus esquecidos em tuas garrafas diárias? Um velho caminha de sobretudo escuro pela esquina, as seringas se acumulam nas vias expressas da cidade. Enquanto se vende cafés e se lêem diários nas bancas que protegem da chuva. Em teus pensamentos mais tristes, Sidarta atravessava um raio de luz e te concebia o satori. Sentado sobre a montanha contemplando o infinito e o infinito te contemplando. Longe da política dos humanos e das convenções numéricas, astrais, apocalípticas. Zen. Um anjo da desolação que pousou com as asas pegando fogo sobre uma montanha iluminada, e que caminhou nas ruas tristes de madrugada enquanto o pastor pregava no meio da multidão. E sobreviveu a benzedrina, a máquina de escrever, sobreviveu a Calo Marx, Old Bull Lee. Que perambulou e adormeceu ao lado de Dean Moriarty. Descansou no paraíso triste e tomou uísque na traseira de caminhões que ferviam gasolina nos motores. E Sidarta te concebeu a luz e tu rodou como um samana mendigando e queimando teu corpo no sol.

Mas longe de toda luz, o vagabundo apodrecia em Denver. Longe de toda luz ele estaria se salvando em uma esquina qualquer, e enlouquecido gritaria por doses cavalares de lithium. Old Bull Lee e suas técnicas de farmácia. Saudações e suicídios no hall de entrada da cidade. O som da ambulância ecoando na sala mortuária, uma tarifa a ser cobrada. Corações estilhaçados, garrafas quebradas. E Sal deslizando triste sem luz, sem Sidarta, longe de satori, pelas esquinas amarelas da cidade. Big Sur - a luz está em Big Sur. Crepúsculo dourado nos olhos incandescentes do vagabundo deitado na beira do mar. Renaldo and Clara atrás do trovador solitário, a luz mística e surreal iluminando seu rosto na frente do lago. O anjo da desolação está sentado no ombro de Renaldo. Cinderela está passando assombrada pelo hall de entrada. Não há nada para ser comentado, mas algum crítica levanta sua caneta. Mr. Jones almoça contracultura ao meio-dia. Seu relógio exato aponta as horas em três capitais diferentes do mundo. E Sal está no paraíso, calculando a distância da próxima parada. Luta árdua para atravessar a rua. Ele está com o pé no lado escuro da estrada, sem pensar duas vezes, seu caixão já foi encomendado. E bebe constantemente para esquecer que estava esquecido um mês atrás e agora é lembrado como um gênio nas ruas e nas universidades, e nos bares, e nos hotéis e quem um dia lhe deu carona conta histórias terríveis sobre seus hábitos de pedir carona. Onde as pontes se cruzam e os fracos não tem vez. Guadalupe, New Mexico. Onde tu teve tuas visões cristãs. Supermercados da Califórnia, com Carlo Marx, um louco homossexual que andou com você e te chamava de gênio. Tudo álcool. Tudo falta de luz. Mas no cume mais alto destas montanhas, Canadá, as empresas de trem, guardas florestais, no clarão dos raios, no esquecimento do EU, na onipresença de tua luz; havia a iluminação. Satori do Anjo da Desolação, Sidarta e os seus.

O amanhã virá com luzes e raios de entendimento coletivo. Sad Paradise, satori nas palavras. Amanhã alcançaremos a luz e não importara o quão alto são os edifícios nem como nossa cabeça está enlouquecendo nessa fumaça corrupta da cidade. E o anjo da desolação desfila entre corpos nus na beira do Ganges, entre a poluição e a salvação, o contraditório nado dos corpos mortos no rio santo. Anjo da desolação enviado ao paraíso para mitificar nossa fé, na loucura, na inconsciência, em algo maior. Entre becos e alamedas, prostituas e carrinhos de bebês, fogo e óleo diesel, a iluminação repentina do nosso entendimento, sobre tudo e sobre todos. SATORI DO ANJO DA DESOLAÇÃO, acima de tudo.

Rest in peace, Sal Paradise....

"Pretendo rezar, também, como minha única atividade, rezar por todas as criaturas vivas; percebi que essa era a única atividade decente que sobrara no mundo. Estar no leito de um rio em algum lugar, ou no deserto, ou nas montanhas, ou em alguma cabana no México ou em um barraco em Adirondack, e descansar e ser gentil, e não fazer nada além disso, praticar o que os chineses chamam de "não fazer nada".

Todo entusiasmado, voltei para o mato naquela noite e pensei: "O que significa eu estar neste universo infinito, pensando que sou um homem sentado sob as estrelas na varanda da terra, mas na verdade sou o vazio e estou desperto naquele vazio e despertar de todas as coisas? Significa que eu sou vazio e estou desperto, e eu sei que sou o vazio, que estou desperto, e que não há diferença entre mim e todas as outras coisas. Em outras palavras, significa que eu me transformei na mesma coisa que tudo o mais. Significa que eu me transformei no Buda"." ....

Jack Kerouac em Os Vagabundos Iluminados(The Dharma Bums)... o 'satori' de Kerouac.

Reny Moriarty
Enviado por Reny Moriarty em 15/04/2011
Reeditado em 15/04/2011
Código do texto: T2910877
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