[Eu, Doente do Mundo?]

Numa fenda perdida do tempo, eu vejo: no bule esmaltado, de orlas requeimadas, o café requenta-se continuamente na chapa do fogão de lenha, enquanto o coador de flanela resseca-se no tripé de coar, ainda com o pó da última coada... bolota seca para eu jogar no pé da laranjeira.

Eu e todo mundo transtemporalizamos, uai! O mais curioso é que eu nunca vi ninguém achar ruim aquele café! Diante do espanto dos meus olhos e do meu silêncio, chegavam, pegavam uma tigelinha sem asa, entornavam o bule devagar, acendiam o cigarro de palha na brasa de um tição, e sorviam, com prazer, aquele café que, hoje, eu não suportaria!

Envelheci, mudei de país, perdi a minha gente, Minas não há mais... ou o quê? Sou estrangeiro de mim? E sou?! Valeu a pena sofrer, gramar duro, até virar doutor... e perder tudo, até o gosto da mangaba... e do café do bule na chapa do fogão?! Não sei responder; mas penso em morrer...

Eu sinto um conforto estranho por existir nesse tempo de agora. Mas sei que pareço um ser que tem existido em vários outros tempos, indo até às cavernas! Aquele Agora era um tempo de gemada com mel e manteiga de leite, escaldo cheiroso de chá de alfavacão [só eu sei o que é isto]. Mas este agora, tem caixas eletrônicos perigosos, tem air bags, tem internet, tem a mentira moralizada, tornada regra do bem-viver... Tem eu, sobrevivente, sobrenadante imprestável prestes a ser coado fora...

Naquele tempo, no outro lado da minha transtemporalização: lá fora, o vento assoviava avenida a cima cantigas de nem ser, cantigas de a gente morrer de saudade imprecisa... saudade de quê? A gente nem sabia direito... Do que é mesmo que eu sentia saudade? O caracol fazia trilhas brilhantes no muro de taipa e eu me encantava com aquela capacidade demostrar que as trilhas... oras, de que servem as trilhas! O caracol trilhava, trilhava e depois, morria seco, largava a casa oca, solitária no fim da trilha!

" Ah... meu filho, você sofre por coisas que ainda não viveu!". Tantas vezes escutei esta frase de minha mãe, tantas! É a prova cabal de que o mundo me adoeceu desde tenra idade...

[Penas do Desterro, 03 de junho de 2011]

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 03/06/2011
Reeditado em 03/06/2011
Código do texto: T3010893
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