Tentação de um Olhar
TENTAÇAO DE UM OLHAR
Sabe, o teu olhar eu compreendo.
Antes de tudo eu compreendo o olhar brilhante, mas o olhar vazio. Vazio dos meus sonhos, das minhas esperanças que não o poderão preencher.
O olhar cristalino que se deixa observar no mais profundo do leito da alma, mas que teimosamente não o faço fecundar.
O olhar de vitrine que me encanta, mas que não imponho ao toque, mesmo sabedor das riquezas das jóias que sei conter ali.
O olhar que se protege e se tranca, porque conhece a fragilidade de todas as suas fechaduras.
Eu compreendo a virgindade do espírito acorrentado que se impõe a castidade do próprio compromisso.
Que força gigantesca a encarcerar o inaprisionável, o que nasceu livre porque é e contém a própria essência da vida.
Que determinação na finalidade da alma!
Eu compreendo, admiro e identifico a tua mais completa individualização.
Que perfeição que não consigo explicar, mas apenas sentir e compreender.
Que perfeição a perturbar todas as inteligências que inteligentemente abdicam de suas razões para simplesmente aceitar a própria incapacidade.
A rendição do possível fácil ao infinito poder do inimaginável.
A rendição do palpável, em face da maior de todas as purezas.
A pureza que estando plena encontra a satisfação de perceber a felicidade na realização que não depende de si mesma.
Aquela que é capaz de admitir que só se vive plenamente quando, enfim, se permitiu completar na absoluta totalidade.
E que tranqüilidade!
E quanta explicação na existência saciada!
E quanto querer sorrir, correr, cantar, e explodir na alegria do amor.
Aquele verdadeiro amor que não sujeita, porque o pleno não comporta exigências.
Aquele amor que se fez sublime, admirado, reconhecido.
Eu compreendo todas as necessidades e as torno visíveis, palpáveis, para compreendê-las cada vez mais.
E sigo interpretando cada destino.
E construo as bases de todas as sustentações no próprio compromisso.
E eu que jurei meu compromisso sem testemunhas, sabendo que mutilava a força criadora que vivia em mim.
E deixei que erupções interiores consumissem as energias do viver, enquanto o ser e o existir colidiam na contradição do sopro injustificável da divindade.
E lembrei-me do pecado.
E toquei com meus sentidos as seculares sensações do remorso.
E me unifiquei ao homem que primeiro afastou-se das maravilhas do paraíso.
E me senti Rei e fraco.
E coroei-me de prazeres e satisfações.
E me fiz homem.
E recuei e cristalizei uma vez mais meu compromisso.
E desejei o absurdo e abdiquei do desejo que me tragava.
E criei a angústia e o sofrimento.
E percebi que pagava com a carne o desregramento de toda humanidade.
E me senti irmão.
E percebi o Santo que se pode extrair de cada criatura.
E livre mergulhei no oceano profundo do teu olhar.
E quis morrer de plenitudes.
E quis me saciar nas labaredas de tuas emoções.
E novamente questionei os compromissos.
E questionei os olhares.
E questionei as razões do criador.
E pensei no amor que consola e tranqüiliza.
O amor que sustenta e justifica.
E enlouqueci de justificações.
E sonhei que te carregava nos braços e flutuavas como plumas.
E voei nos sonhos da minha felicidade.
E te fiz satisfeita.
E te beijei nos lábios.
E te acariciei o corpo.
E te fiz saciada.
E pequei de amor.
E novamente despertei do sonho e retornei para a vida.
E me fiz andarilho nas avenidas da realidade.
E emudeci os sentimentos.
E calei-me infelizmente de mim.
Eu que acordado sonho e que sonhando realizo.
Eu que percebo e ao perceber me faço cúmplice.
Eu que me aproximo e me levo a conquistar.
Eu que ao conquistar me faço o único culpado.
Eu que ousei quebrar os cristais mais puros que faziam da mais sublime consistência o mais belo dos encantos.
Eu que te gerei a unidade, o complemento, e que não possibilito a constância e a permanência.
Eu que te fiz e te estou, mas que me torno fugitivo de tuas necessidades deixando assim morrer a esperança.
E que escalonamento solitário às solidões inacessíveis!
E quanto querer o paraíso dos teus braços, o acalanto dos teus sussurros, o queixume dos teus rumores.
E quanto querer descansar na paz dos carinhos do teu calor.
Transferir os sonhos e repousar nos prazeres da carne que solidifica.
E então fazer renascer o homem compromissado apenas na vontade e no amor.
O homem que não aceita a escravidão, porque não se escraviza o inaprisionável.
O homem que não se faz mutilado.
O homem que não se subdivide no ser e no existir.
E então definitivamente firmar a mulher na sua vestimenta de carnes e de ossos.
E deixar que se complete de gente e que se deixe delimitar de afagos e abraços.
E ficar quieto e quedar-se tranqüilo.
E envenenar-se desse olhar.
E deixar-se morrer de tanto amor.