Fauna & Flora: FIDELIDADE

O veleiro parecia saído de um compêndio de História ou de um romance de aventuras: uma espécie de nau em madeira envernizada, descascada pelo sal e pelo sol, dotada de uma impressionante profusão de mastros e de cabos. Gingava suavemente sobre as águas do rio Arade, junto ao ancoradouro, e gemia, no apelo próprio dos barcos à vela saudosos das ondas e do alto mar.

Do cais, observávamo-lo - eu, de cabelo ao vento, a mão a deslizar pelo forro da bolsa em croché azul, buscando a máquina fotográfica para registar a imagem.

Era encantadora e encantatória aquela visão de um fragmento do passado, na sua complexidade de cordas diversas, adriças, escotas, moitões, catracas e amantilhos – sem contar com um sem número de outros instrumentos náuticos, cujos nomes, tais como estes, aliás, eu ignorava mas pressentia…

Levantara a câmara e preparava-me para enquadrar a fotografia, quando, no tombadilho, repentinamente descortino um marinheiro – o rosto duro, a pele curtida, o olhar sagaz de intrépido aventureiro!

Detenho-me a tempo.

Sentamo-nos num banco próximo e deixo o meu olhar vaguear ao largo, cobrindo as gaivotas em voo alto e o céu tenuemente alaranjado, em final de tarde.

Apercebo-me, ao recuar a vista para mais próximo plano, que uma mulher de meia-idade, cabelo louro apanhado, extremamente elegante, de saltos inesperadamente altos e finos, começa a descer o passadiço de madeira que parte da margem e desagua numa série de placas flutuantes, adjacentes ao veleiro. Completa a primeira etapa do percurso, seguida por um cão amarelo, saltitante, de cauda erguida a ondular ao vento. Sem se deter, atinge o corredor flutuante e prossegue o seu caminho.

Mas aí, eis que o cão se distancia da dona. Vemo-lo parar, cheirar o chão e a brisa, olhar a mulher que se afasta em passo decidido, voltar a cabeça para o veleiro e, com esforço, dar alguns passos hesitantes, mas esforçados, sobre a plataforma.

A sua cauda deixou de abanar e recolheu-se entre as pernas. As suas patas parecem ventosas que se agarram ao chão, e só uma força colossal as arranca e um mecanismo potentíssimo acciona o movimento que as faz avançar sobre a superfície bamboleante.

O seu corpo cada vez mais se abate, como se a gravidade sobre ele exercesse um efeito inexorável. Mas o cãozito avança, seguindo a dona que já alcançou a escada de madeira e subiu ao veleiro cumprimentando o marinheiro com familiaridade.

Identificamos no cãozinho os sinais da vertigem e do enjoo, e quase partilhamos da sua náusea e impotência. Todos acompanhamos empenhadamente a odisseia a que se entrega.

Próximo da escada, o cão amarelo praticamente se arrasta. Mas continua, até que atinge a base dos degraus. Então, pára. Olha o casco. Com o focinho atento, aspira o ar de cima, do topo da escada, e a sua cauda abana timidamente. Podemos senti-lo suspirar. Volta a baixar a cabeça, a ajustar o rabo entre as pernas, e, com notável esforço, sobe ao convés, salta e desaparece por detrás da amurada, a cauda esvoaçando subitamente, num arroubo de felicidade.

Aplaudimos, com um sorriso, o feito do pequeno cão!

Quase simultaneamente, chega-nos, do veleiro, um eco de risos, exclamações de alegria e latidos exuberantes.

Depois, tudo se acalma e serena. Novo sopro da brisa marítima nos atravessa, com cheiro a sal e aventura.

Batem as asas com leveza, sobem rapidamente, volteiam na corrente e planam demoradamente, as gaivotas. Festejam, aos gritos, o prazer de voar.

Lisboa, 19/08/2006

Ilona Bastos
Enviado por Ilona Bastos em 10/12/2006
Reeditado em 10/12/2006
Código do texto: T314627