Vida útil

Quando pequeno era comum visitar o trabalho de meu pai. Trabalhava em um depósito de uma loja de ferragens, e funcionava perto da escola, no centro da cidade. Meados dos anos oitenta. Do outro lado da rua ficava a loja e no andar de cima funcionava o escritório, onde uma tia também trabalhava. O meu encanto de infância era visitar a empresa e venerar as máquinas de escrever e as calculadoras. Neste escritório residia o meu sonho da época: ser como a minha tia, atendendo gente e usando os aparelhos. Ela era o meu padrão de adulto. No meu imaginário a cena era este escritório, e eu sempre usava camisa preta. Também usava preto quando comecei a sonhar com meu noivado, atrás de um bolo e sorrindo para as câmeras (não entendo o porquê de um bolo num noivado, mas está bem). Ainda pequeno rabiscava folhas em casa, bulas de remédio, tudo o que aparecia na frente, transformando-os em carnês de prestação, imitando as meninas do escritório. Anos depois tive a oportunidade de escolher meu curso secundário e optei pela contabilidade. Trabalharia com certeza com as calculadoras e máquinas, como ela. Aprendi a usar a máquina de datilografia, tornando-me exímio digitador.

A minha opinião sobre o trabalho é estar ligado ao prazer pela atividade, independente da remuneração. Certo é que ganhar bem - ou razoavelmente bem - é importante, mas não conheço quem consiga ganhar bem trabalhando mal. Sem gosto não há atividade que perdure, mas vou além: Eu não consigo dissociar o trabalho do sentido da própria existência; a minha atividade profissional não poderia nunca ser alheia à minha vida como um todo, ou seja, eu preciso ver as obras de minhas mãos e sorrir para ela, enxergando-a como uma contribuição efetiva à sociedade, sem lesar ninguém. Não consigo ver as palavras da bíblia como um castigo, e os “trabalhos penosos com o suor de teu rosto” uma ameaça. A vida é dura por ser vida. Se o sentido da vida é encontrar um sentido para ela, então a atividade profissional precisa ter esta referência, que é ter um sentido dentro de nossa vida.

Dito isto, onde foi parar aquele sonho de infância, que contemplava, ao mesmo tempo, homens e máquinas? onde foi parar o prazer pela rotina e interação pessoal? fugiram, ou os sonhos têm prazo de validade? Se não houve prazer, será mesmo que o vigor da juventude era tão forte a ponto de anestesiar as atividades da época?

Se cheguei até aqui sem prazer, o que poderia criar, então, satisfeito com a vida? Será esse o sonho dos meus sonhos, escondido no profundo de minha alma e despertado de um sono de duas décadas? Será possível reencontrar as calculadoras e máquinas de datilografia - figuras arquetípicas da satisfação existencial - em outro lugar, outra coisa? o mais importante de tudo não é a atividade profissional por si, mas a satisfação pessoal de viver plenamente a existência em harmonia com a humanidade, sendo útil, perfeito colaborador.

Por que não sonhar, mesmo depois de velho? sou um quase ex-jovem-adulto cansado. Não desistir deste sonho, que é viver a plenitude pessoal ultrapassando as paredes do trabalho soa como utopia? talvez, mas prefiro dirigir-me pelas estrelas, as quais nunca alcançarei, do que ficar ciscando como galinhas só porque alguém disse que é assim que tem que ser.

Trabalhar por prazer é viver o constante sétimo dia da criação divina, quando Deus viu que tudo era bom e descansou.