A ÚLTIMA CEIA

A grande lama que é o mundo é bebida com desejo
Por um sonhador que a própria sombra não quis por perto.
E como um sábio que clama por alguma estupidez
Pra lembrar que é gente, o sonhador clama por um nada.
E sua alma sente...

De tanto buscar inutilmente, fiz do mistério minha morada,
Fúnebre numas vezes, cômica em outras.
E meu corpo agüenta.
No beco escuro acima de mim o vento traz a chuva.
Esfria...
Mil mosquitos me mordam, mas não saio daqui:
Sinto-me um prato cobiçado por um mendigo que naturalmente tem fome.
Estes pequenos seres sedentos de sangue, mal me encostam: gozam.
E eu, grande alma, uso camisinha até pra pensar.

Está passando a angústia.
Os deuses para tudo têm remédio
Menos para o passar e o sucumbir.
Pai nosso que está não sei:
Que minha anemia intelectual não deixe meus versos sem cor;
Que eu nunca descubra o que sou, para que nunca me cobre nada;
Que eu nunca descubra meu endereço;
Que o meu sorriso tenha sempre o selo do meu olhar;
E que o meu pensamento se cale...
Esfria...

Retiro a perna direita do parapeito
Sem dar bola para a minha alma.
Um grito contido significa algo que não sei,
Mas subitamente me incomoda.
Todos os meus amigos estão pelas ruas carregando a minha paz
E no coração de cada um deles
Há um verso que eu ainda não escrevi.

Os mosquitos me saboreiam com uma delicadeza tão grande
Que eu nem os vejo chegar:
A delicadeza da fome do que não pensa;
Do faminto apaixonado cujo prazer,
Cuja saciedade, é sempre silenciosa como a de algumas mulheres...
Delicadeza que me falta,
Pois, na fuga de um deles, minhas mãos se uniram
Com a força de um deus aborrecido
E me deram o prazer de ter sido a última refeição de um mosquito.
Iguaçu
Enviado por Iguaçu em 17/12/2006
Código do texto: T320382
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