[Ferraduras Viajadas no Tempo]

[“Deixem-me enferrujar e apodrecer em paz”,

diria a ferradura se pudesse falar!]

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Vai, topa nas pedras, volta, e quase junta as pontas;

assim é o arco da ferradura —

símbolo de caminhos que, buscando-se,

explicam a chegada pelo ponto de partida.

O arco da ferradura mostra um fatídico quê de inutilidade:

a ânsia por necessidades mal-compreendidas,

o incontido querer dar a volta ao mundo,

e ao fim do imenso arco, o retorno ao pó!

Nesta minha vida, topei com inúmeras ferraduras:

as desgastadas de tantas topadas nas pedras;

as caídas nas ruas solitárias;

aquelas pregadas nas janelas;

as penduradas nos calombos da parede

em frente à porta da rua, para trazer sorte a casa;

aquelas que alguém esqueceu nas traves

empoeiradas da varanda dos arreios;

as perdidas na trilhas das invernadas.

Mas nenhuma dessas é mais viva na lembrança

que aquela aquecida ao rubro no inferno

do braseiro da forja do ferreiro Rafael,

homem descarnado, cujos braços secos,

descarregavam monótonas marteladas

que faziam as ferraduras guinchar na bigorna,

enquanto ele esgoelava para o mundo a música

... “Ai, ai, ai, ai, está chegando a hoooora,

o dia já vem raiando, meu bem,

eu tenho de ir embooora...”

[Que hora é essa Rafael, que hora é essa

que você nunca me diz qual é?

Seria a hora do amante pular para o jardim e sair

na carreira que o marido já vai chegar?

Que hora é essa Rafael, que hora é essa

que você nunca me diz qual é?

Seria a hora de eu tomar o trem para São Paulo

e dizer adeus às ruas da minha Araguari?

Que hora é essa Rafael, que hora é essa

que você nunca me diz qual é?

Seria a hora de sair o enterro do pai da moça

que, desesperada, espetava alfinetes nos pés do morto?

Que hora é essa Rafael, que hora é essa

que você nunca me diz qual é?

Será por causa das dores dessas horas

que as ferraduras gritam tanto em sua bigorna?!]

Ah, todas essas ferraduras viajadas no tempo!

Dessas, eu bem sei que nunca me livrarei;

esses seus escuros cravos são irremovíveis:

fixaram em minha alma essas lembranças todas...

[Desterro, 27 de outubro de 1997]

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 21/09/2011
Código do texto: T3232545
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