[Tributo a Lugar Nenhum - Revisitado]

Eu não tenho a menor intenção de ser claro. Não preciso ser claro. Se tivesse esta intenção, ela seria falsa. Eis um longo poema, um lamento em tributo a Lugar Nenhum. Não declinarei o nome de tal cidade... melhor assim. Mas afirmo que ela existe, eu não sonhei Lugar Nenhum!!

Os que me lerem [se é que me leem], talvez tenham tido, como eu, a ocasião de percorrer as ruas de um certo Lugar Nenhum. E se passaram por ali de olhos abertos e nervos expostos, talvez encontrem em meu poema alguma ressonância com os seus sentires, talvez... nada é certo, portanto, apenas, "talvez". Não há nada mais fútil e desnecessário que escrever esperando provocar sensações em alguém!

O poema "Tributo Lugar Nenhum" vem sendo escrito e reescrito desde 1998, e tenho certeza de que o reescreverei sempre...

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[A cidade protege sua memória, é ciosa de suas coisas... mas recebe-me, e sabe muito bem que, fora do lugar em que eu nasci, todo lugar é desterro, é nenhum lugar. Portanto, é meu dever protegê-la; por isso, não a nomeio!]

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Hoje, estou em Lugar Nenhum. A noite vai se escoar assim, vazia, e eu estou seco e absurdamente só. Nada de diferente vai acontecer, vou acabar morrendo de tanto tédio.

Caminho pelas ruas desertas de Lugar Nenhum, e isso me faz tão bem que a minha vontade é de caminhar até a exaustão! E enquanto vagueio, transporto-me... Sinto na face uma exalação imiscível aos perfumes da noite, um sopro que escapa das grades dos porões úmidos, e de lá, como se tivesse lambido velhos túmulos, traz o cheiro e a frialdade da morte. Esse vento tétrico, que tudo remete ao passado, canaliza-se pelas ruas estreitas de Lugar Nenhum.

A história de Lugar Nenhum não foi apagada por modismos. Ficando à margem do progressismo irracional, a cidade protegeu sua memória! Vejo traços dessa história que me tocam profundamente, vejo as sacadas com grades de ferro bem floreadas, as altas portas com batentes de madeira lavrada [as gretas da madeira talvez pudessem medir o quanto o sol e a chuva deram contra essas portas]; o antigo matadouro municipal; o imenso prédio da cadeia, o velho fórum, a velha câmara municipal, hoje, sabiamente, um museu.

As pessoas de Lugar Nenhum carregam a mesmice de seus antepassados; a mesmice que está bem-guardada, e parece brotar de sob as pedras do calçamento de suas ruas, a plácida mesmice que reza nas missas, e cheira a guardados com naftalina, mas é a referência silenciosa, explícita sim, mas nunca mencionada, pois dela não é preciso falar. É uma mesmice que não desalma as pessoas e tampouco as deixa suspensas no Nada!

Ah, se eu pudesse contar a Lugar Nenhum tudo o que eu sinto quanto ando por suas ruas... Aqui, ouço vozes, sinto um espírito, um quê de mistério, como se os sonhos antigos estivessem ainda por acontecer.

Em Lugar Nenhum, também passa o trem, mas aqui, a Rua da Estação, diferente daquela da minha Cidade Perfeita, é só uma rua, não me evoca sentimento algum; nem sequer conecta [minhas] saídas para o mundo, pois eu não nasci aqui...

O Ser de Lugar Nenhum não tem nostalgia do trem, aliás, por aqui, o trem só passa, não chega. A Estação de Lugar Nenhum não tem mais os bulícios do chegar, tampouco sente o vazio do partir. Por Lugar Nenhum, como em toda a parte, passam apenas trens cargas que vão para algures... Mas a ferrugem que vejo nos trilhos me fala da raridade desses trens!

É certo, eu não tenho raízes em Lugar Nenhum; apenas sei que por aqui passaram as tropas de mulas que se dirigiam às minas das minhas Gerais. Mas ainda assim, talvez as pedras, Os muros descascados, os velhos alpendres, e as fachadas trabalhadas dos casarões me deixassem cantar o lugar... Será?! Não creio; pois é provável que Lugar Nenhum descompreenda os lamentos saudosos, as evocações que desperta nos forasteiros que aqui vêm...

Os alpendres dos casarões de Lugar Nenhum... Dizem-me o quê? Tudo e nada... não nasci aqui. Mas numa madrugada já distante no tempo, eu perambulava minhas saudades pelas ruas da cidade, e então, aconteceu: um boêmio feriu a noite com um maravilhoso solo de saxofone... E as evocações de "As Time Goes By" lacrimejaram-se para dentro de um alpendre escuro, carregado de promessas. Depois, silêncio... e o alpendre, apenas escuro... Em seguida, ouvi um lamento de estremecer o peito! Ante a mais desdenhosa das indiferenças que uma mulher pode demonstrar, o homem exalou para o escuro alpendre toda a dor da sua paixão naqueles sons...

Naquela noite, minha alma foi uma só com Lugar Nenhum, e Lugar Nenhum foi alma gêmea da minha Cidade Perfeita!

[Itapetininga, 10 de abril de 1998]

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[Desterro, 24 de setembro de 2011]

Nota: do meu "Cavalos da Noite", ilustrado por Paula Baggio

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 24/09/2011
Reeditado em 24/09/2011
Código do texto: T3237739
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