[Uma Certa Invasão de Luz]

Nada há nada neste relato a seguir; nada. De resto, nada há mesmo em todas as falas, em todos os relatos de instantes que se perderam no girar deste mundo. Exceto talvez por um pequeno vinco, uma insignificante nervura deixada na memória, por uns tempos...

É preciso, incessantemente parir a vida futura, engendrar novos sonhos, novos mitos. Nada, ninguém, nunca vale nada! Somos já ossos secos na paisagem semovente da vida, cinzas a voar para o esquecimento. Escrever é só um despique sarcástico, solitário, inútil contra a vida matadeira.

E tudo que eu preciso agora, é conseguir tirar de mim, desta mente cansada de mentar absurdos inúteis, a fotografia de uma invasão de luz, sim, a luz roubando espaço à escuridão fria, a luz revelando contornos das coisas guardadas com o zelo da escuridão... É só o que me importa — cortar o incômodo que esta visão vem me causando, já há uns dois ou três dias quando, na casualidade de uma conversa, a imagem ressurgiu, nítida, neste meu visor de quase 100 anos de idade... Como escrevi, a vida dura já além do suportável.

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Mais uma tarde de explosão de luz sobre as amplas ruas da [minha] Cidade Perfeita... A claridade mágica do Planalto Central chega a levar a gente a ter vertigens, visões que tremulam soltas no ar sem gente das ruas vazias, silenciosas... São 2hs da tarde na Rua Estrela do Sul... Faz calor, muito calor... mas há uma espera, e uma certeza: o refrigério da brisa do Planalto quando o sol esmorece e a tarde cai...

Antes, eu caminhava com a minha mãe por uma calçada ancha o bastante para 5 ou 6 pessoas andarem lado a lado. Agora, cruzamos a grande Avenida Minas Gerais e ganhamos a Estrela do Sul. Com pouco, chegamos. Estamos agora à "porta da rua" da casa da Dona Tarsila, amiga de minha mãe, desde há muitos anos.

Como sempre, uma das duas folhas da pesada porta está entreaberta de uns 10 ou 15 cm, eu diria. Este é um tempo em que as "portas da rua" ficam assim, abertas... sem medos. E a da casa da Dona Tarsila está assim, quase aberta... Este é também um sinal de que tem gente em casa.

Dos meus seis anos de idade, os olhos buscam alturas, sem cessar... e essa dorzinha no pescoço dobrado com algum esforço me revela: lá estão aqueles dois painéis de vidro em que se divide a "bandeira" da porta; caprichando na vista ainda não míope, eu posso ver as finas teias de aranha nos cantos dos vidros — ingênuas manifestações do tempo, pois o tempo gosta de se manifestar em ingenuidades como essa.

Pois sim... lá no alto, vejo a mão da minha mãe fechar-se a modo de deixar aparecer a saliência, o nó do dedo médio dobrado. Acompanho essa mão. Ela vai bater. Bateu umas três vezes ou mais, eu não contei. Hoje, um presságio sombrio me faz pensar que ela bateu do mesmo modo como soam os primeiros acordes da Quinta Sinfonia de Beethoven — ah, credo, as batidas da morte?! Sim, hoje é, ou hoje era... mas no Ontem dos meus 6 anos, não era não! E aí, o quase grito:

— Tarsila, ô Tarsila!

Silêncio... A Dona Tarsila é surda, não de todo, mas é. De novo, as batidas na porta com o nó do dedo médio daquela mão morena, grande, e as duas alianças juntadas pela vida no dedo anular:

— Tarsila, ô Tarsila!

Silêncio... silêncio... a folha entreaberta da porta não se aluiu com as batidas; permaneceu entreaberta aqueles 10 ou 15 cm que eu vi quando chegamos. Mas agora, ouço passos no assoalho da casa vindos lá dos fundos, e a seguir, tremor de vidros de cristaleira, sons que eu já conheço bem. Dona Tarsila chega, a porta se abre, e a luz vinda da Rua Estrela do Sul invade a casa, de chofre! Ela cumprimenta a minha mãe, afaga-me a cabeça, e as duas adentram a casa, a minha mãe falando alto, coisa que lhe é difícil, muito difícil, pois ela jamais fala alto com os filhos, ou com os outros. Ela descende de gente antiga da velha Minas Gerais... gente do Desemboque e de Dores de Santa Juliana, gente que mata calada...

Agora a porta está aberta mesmo, e eu fico para trás... A explosão de luz dentro da casa sombria até há pouco parece até uma recriação do mundo... Trevas frias antes... formas indivisas; e agora, coisas reveladas... fotografias nas paredes, cadeiras, estatuetas, vidros, tapetes, forrinhos de crochê sob os objetos... Ah, e até as assombrações, impedidas pela luz invasora de gemer sob os móveis, sob o assoalho rangente, saíam, espavoridas, fugindo da luz! Agora, os móveis escuros da sala têm contornos nítidos, quinas, arremates... E sobre o verniz da mesa, a luz revela à minha visão rasante[sou pouco mais alto que a mesa] escassas e minúsculas partículas de poeira. Fico ali, na sala até escutar a minha mãe:

— Ô Carlinhos, vem experimentar o pão-de-queijo da Tarsila!

Entro em silêncio, chego até a cozinha. Pão-de-queijo saído do forno do fogão de lenha, leite com café... huummm... na volta das 2hs da tarde, o que mais pode querer um menino mineiro?!

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Nada disse a elas sobre o impacto que me causou aquela invasão de luz vinda da Rua Estrela do Sul. Nada disse à minha mãe o tempo todo, enquanto eu crescia. Nada disse a ninguém a vida inteira: nada disse até este momento da minha vida, em que estou prestes a comprar o coringa! Mas estou dizendo agora: estou fazendo o devido corte. Que esta visão não me persiga mais, ainda que, com certeza, eu não tenha conseguido dizer tudo... E quem consegue dizer tudo sobre alguma coisa? Bem que eu avisei: nada há nada neste relato!

[Penas do Desterro, 16 de outubro de 2011]

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 16/10/2011
Reeditado em 17/10/2011
Código do texto: T3280227
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