UM TEMPO LONGE NO TEMPO

Hoje eu acordei bem cedo, lá fora ainda estava escuro, tentei acender o velho lampião a querosene que eu tinha deixado ao lado da cama, procurei o fósforo para acende-lo mas a caixa de fósforo estava vazia, eu fumo muito a noite e nem percebi ter queimado o último palito. A réstia da lua era a única companheira na madrugada, é com ela que eu converso quando perco o sono no meio da noite. Meu marido morreu já fazem dez anos, como não tivemos filhos, vivo sozinha com minha solidão. Enquanto isso vou levando essa minha vida a espera da morte que teima em não vir me buscar.

Lá fora o galo canta insistentemente como que para avisar-me que está amanhecendo, o sol manda seus primeiros raios por detrás das montanhas, as galinhas descem do poleiro e começam a ciscar em volta da casa, para encontrar formigas ou minhocas, enquanto esperam que eu chegue com o milho para o café da manhã.

Depois de me espreguiçar uma duas vezes, apanho a velha bacia de alumínio onde tomamos banho uma vez por semana, mas isso é sagrado, quando chega o sábado meu corpo pede um banho caprichado, com direito a sabão em pedra e caco de telha para tirar o cascão da semana.

O sol resolveu voltar pro seu canto e mandou a chuva em seu lugar, o tempo enfeiou de uma hora pra outra, parece que vai vir um dilúvio por aí, por azar meu agorinha mesmo começou a cochar minhas tripas uma dor de barriga daquelas... A casinha (banheiro), fica lá nos fundos do quintal, tenho que fazer as necessidades no pinico.

Por sorte, eu tinha guardado dentro de casa um feixe de lenhas, que tinha cortado um dia antes, acendi o velho fogão de taipa que meu marido fez logo que nós casamos a mais de quarenta anos, era enorme feito de tijolos e coberto com barro, muito bom aquece a comida e a cozinha, o único comodo da casa que é grande, uma mesa de tábuas de pau a pique colhidas ali mesmo no mato, era onde eu e meu marido fazia nossas refeições, a gente queria ter muitos filhos para encher a casa, mas Deus não quis.

O pão caseiro que amassei ontem a noite está derramando de tanto que cresceu, tenho que apressar para acender o forno e assá-lo para o café da manhã, nem isso tem mais graça era tão bom quando meu marido estava comigo, ele adorava o pão que eu fazia para ele com tanto gosto só para ouvir o seu elogio, antes de morder o primeiro pedaço ele babava enquanto passava manteiga e me deixava alegre com muitos elogios. Eu aos meus 86 anos estou muito cansada, não é nada fácil viver assim, vivo de recordações e me distraio conversando com os bichos e muitas vezes falo sozinha pelos cantos.

Remexendo as coisa da pobre senhora, alguns vizinhos encontraram essa carta com o relato que eu acabo de transcrever, ela foi encontrada morta em seu quarto tão solitária quanto viveu.