Amor e fé

Acreditar...e muito. Irracionalmente.

Isso me dá um direito soberbo e soberano sobre tudo o que é condenável no mundo. Tudo bem...não estamos mais podendo queimar ninguém na fogueira...Bruxas e adúlteras andam soltas por aí, sem que se possa dizer nada contra. Sem que se possa sequer fazer como se fazia tempos atrás: esconder os olhos das crianças sob as anáguas para que não vejam como o mundo é.

Então, o que me sobra? Todas as noites, observar aquela imagem ensanguentada numa cruz, e entre o prazer quase carnal e a culpa eterna, rezar. Rezar aquela ladainha decorada com muito custo. E sabe o que é bom? Isso se tornou tão automático que consigo dizer essas palavras, bolinar uma penca de contas e ainda pensar no que será feito de meu trabalho no dia seguinte. Assim que termina, penso: Ufa, terminei mais essa maratona de palavras sem sentido. E certamente, já garanti meu pedacinho no paraíso. Isso é que é reforma agrária justa. Decorar palavras, fingir ser bom e inatacável e quando morrer, subir sem escalas para um lugar construído nas nuvens, com anjos tocando lira......

Mas aí me pergunto, já que não posso perguntar a ninguém: o que eu faço com essas coisas que insistem em povoar meus pensamentos logo que vou dormir e que são tão sujas e pouco comentáveis? O que faço com as prostitutas e rapazes de aluguel que comprei e usei como alívio para minha violência? O que faço com o pequeno roubo cometido no caixa do supermercado, quando me deram troco errado? O que faço com o ódio mortal que tenho por essa mulher que se deita ao meu lado todas as noites e que apenas tolero porque o mundo não permitiria que eu expressasse meus desejos por corpos iguais?

No mesmo corpo ensanguentado de barro e eternamente dormindo, encontro a resposta: resignação. A resignação nos separa dos porcos. Ao que entendo que os porcos são plenamente felizes. Apenas aguento. Não quero chafurdar na lama. Quero chafurdar em lençois sujos apenas de meus pensamentos que envolvem chicotes e tiras de couro e em idéias criativas de como assassinar meu chefe.

Sempre que acordo, sou limpo. Toda a imundície pertence ao dia anterior. Me limpei nas águas bentas e puras da dissimulação. Sou quase santificado. Meus filhos são os mais louros e estúpidos do mundo. Minha mulher a inabalável e sorridente depressiva que quer cortar os pulsos, mas vive adiando esse momento porque não há tempo entre o salão de beleza e o encontro furtivo com algum vagabundo bem sujo e grotesco.

Assim, sei que vou para o céu, ou para qualquer outro lugar de nome equivalente....Sim, porque não sou bobo nem nada. Se o céu não pertencer ao homem de barro sangrento, pelo menos já faço minha média com os orixás e com Buda. Algum deles há de me dar um passaporte direto para a paz eterna.E se é pra ter sossego e não ter contas para pagar no fim do mês, vale qualquer oração, em qualquer língua. E até tolero não ser eu mesmo aqui. Tolero aniquilar minhas vontades obscura e não escrever o que é condenável e verdadeiro, em nome da boa e cristã convivência. Tolero até conter o vômito e bajular a todos que estão no nível médio de ser humano. E ainda ajudo a condenar quem pensar diferente. Porque o ser humano tem de se tornar melhor e buscar a paz mundial. Mesmo que nosso caráter traiçoeiro esteja sempre nos impelindo para a guerra. Sim...sou quase uma miss universo. A partir de agora, quero a paz mundial. Quero desejar um beijo no coração de todos. Quero trazer alegria a todos....e se isso me fizer arder no fogo do inferno, prometo voltar de lá, entrar em corpos atormentados, fazer caras e bocas idiotas e logo depois sairei expulso por algum pastor ....alguma diversão terei de ter.

De qualquer forma, eu acredito. Vou trancar meu armário, com toda a sujeira dentro.Não vou mostrar a ninguém....e quem sabe, não serei o próximo homem de barro sangrento, só que com um sorriso no rosto e com os dizeres em caixa alta sobre a cabeça "VOCÊ FEZ UM BOM TRABALHO".