Cena de anjos (Após a morte de Heitor)

Finalmente, os quatro pés pousaram no quarto escuro. O tempo já não corria como o esperado, como o humanamente previsível. Ele se estagnou entre o instante em que o corpo caiu ao chão, com a garganta cortada e que o homem entrava no quarto, prestes a emitir algum som.

Eram dois anjos. Que pousavam sobre o chão ensangüentado. Um, Gabriel. Aquele que esteve tão próximo dos homens e suas dores, que por vezes, era como se estivesse vivo. O outro anjo Uriel, acompanhava seu mestre, na tentativa de entender o que são os homens.

Gabriel falou:

-Observe este corpo caído ao chão, meu irmão. Veja o corte profundo em sua garganta.

Uriel não entendia aquele momento. Volta-se para seu mestre:

-O que o fez tomar tal atitude?

-A dor. O medo.

-Mas dor e medo todos os homens sentem. Por que é que nem todos então retiram suas próprias vidas?

-Porque em alguns, a dor de se estar vivo é mais insuportável que o medo do desconhecido após a morte.

-Não compreendo....

-Eu estive muito mais próximo do que o recomendável dessas criaturas. E posso dizer que certas dores jamais se acabam. Nascem com o corpo. Assumem novas formas ao longo da existência. E chega-se em alguns casos a anular a humanidade de cada um. Eles se tornam irracionais.

-Mas isso é cruel...Como Ele permite isso?

-Ele não permite ou deixa de permitir nada. Ele apenas confia que o homem será capaz de lidar com cada dor com a qual nasce. Mas a maioria deles, sempre escolhe os caminhos errados. Este, caído ao chão, preferiu ser outra pessoa. Viver uma outra vida, para não ter de enfrentar o que ele era de verdade.

Os anjos se entreolharam. Uriel ainda sentia a dor vinda do corpo estirado, como uma assinatura da fraqueza. Percebia claramente através da pouca luz que emanava de seu corpo, o quanto aquele ser foi torturado pelas circunstâncias.

O tempo continuava inerte. E Uriel observava a cena à sua frente, ainda sem entender por que naquele instante, as coisas eram daquele jeito.

Gabriel Falou:

-Essa sua dúvida, esse seu desconforto, é a primeira coisa que o aproxima dos homens. Vejo que sua mente começa a não aceitar o equilíbrio. É esperado. O mundo das almas humanas, é feito desproporções. De uma matemática imperfeita. E foi Ele, quem permitiu assim. Em todos os multiversos, somente essas criaturas podem alterar o ritmo lógico das coisas. É isso que as torna tão desconfortáveis para nós. Quando estive junto a eles pela primeira vez, quis chorar. Mas isso é uma sensação humana. Então descobri que ao estarmos próximos a eles nos tornam vulneráveis. Porque eles não obedecem às regras da natureza.

-Meu irmão, não sei se gostaria de estar tão próximo. Esses seres são traiçoeiros. Fracos. Eles contaminam. E eu quase posso sentir a dor.

-Sim. Mas são seres capazes de uma alegria maior do que a que jamais sentimos. De uma felicidade maior do que qualquer coisa que possamos ter experimentado. Cabe a nós, entretanto, observar. Se nos aproximarmos demais, nos tornamos um deles.

-E o que estamos fazendo aqui, então?

-Cuidando para acabar com toda essa história. Vamos levar este espírito para o lugar devido.

-E onde será?

-Isso, Ele decidirá.

Enquanto Uriel permanecia parado, Gabriel retirava uma pequena luz do peito do suicida.

-Esta é a alma daquele que em vida, foi chamado de Heitor. Agora, é só o que sempre foi.

E com a alma em suas mãos, Gabriel emitiu um sorriso discreto, que muito espantou Uriel.

-Não sabia que poderia sorrir, como um humano....

-Como lhe disse, meu irmão, quando se está entre humanos, nos tornamos um pouco vivos também.

E partiram.

O tempo voltou a correr.