[Favas do Absurdo]

[“Olha estas favas meu filho... são remédio!”]

Havia uma casinha pequena de portas tão frágeis que podiam ser abertas com um espirro do meu tio Dilson. Era coberta de telhas comuns, quase beira-chão, quase... Na secura das angústias dos agostos, os ventos do Planalto Central assobiavam nas brechas do telhado... Fogão de lenha, bica d'água longe da cozinha... mas a mãe da casa era dura, muito dura aos sofrimentos! Logo acima da casa, o cerradão espesso trazia as cobras até o terreiro. Em noites de lua, mãe contou, eu não vi, que nem era tão difícil caçá-las no limpeiro, antes fechar a casa para o sono da noite. Num certo junho, eu nasci ali, e era boca do inverno, tempo de secura sem fim... eu sou sombrio assim, por que? Não sei...

Depois que eu cresci, eu voltava à casinha... e em todas as vezes, eu nunca podia entender como pude nascer ali, e como mãe, uma morena brasileira, alta, conseguiu se acomodar ali, para me trazer ao mundo. Mas isso não me surpreende: sempre estribada numa coragem e num otimismo até hoje incompreensíveis aos meus olhos, a vida toda, mãe fez milagres, fez curas impossíveis...

Depois, houve um certo chalé e uma certa avenida extensa. O chalé ficava defronte a um bosque de grandes árvores. A princípio, quando eu caminhava por ali, mãe me levava pela mão suave e grande, grande de esconder a minha mão. Depois, comecei a andar só, perambulando pelas trilhas, estralando folhas secas sob o meus pés. Nesse tempo, eu juntava santos de papel caídos no bosque, e tacava fogo neles... onde já se viu, santo de papel? Absurdo, não valem nada, nada!

Recursos, tínhamos nada, nada além da coragem, e das forças de mãe. Se os irmãos mais velhos tinham dor de garganta, ela dizia: "corre filho, vai lá no mato, e traz um punhado daquelas favas secas que eu te mostrei!" Eu atravessava a avenida, e corria pelo bosque até a grande sucupira; enchia os bolsos de favas, e zunia para casa... mas resmungando: por que mãe há de ter tanta pressa com essas coisas?! Só depois eu soube: ela vinha de um mundo, de um tempo em que a ligeireza nunca combatia a calma, nunca... Por isto, eu acho, havia tanta serenidade em seu olhar! Mas aí, eu corria, corria... — Mãe, as tais favas que a senhora mandou buscar!

Pronto... eu ficava espiando ela “machucar” as favas, e em seguida espremê-las num algodão, até extrair um óleo que era cuidadosamente pincelado nas amigdalas inflamadas... Isto era o possível de ser feito, era o nosso recurso... e, é claro, isto e mais as preces de mãe aos seus guias de luz, que eu me lembre, um deles, o “Senhor” Eurípedes Barsanulfo, como ela dizia.

Em silêncio, a minha revolta engrolava dentro de mim, sem achar saída: aquelas eram as favas do absurdo da nossa pobreza — salvadoras favas! Eu tinha de lutar, e lutar...

Penso naquela vida, relembro os olhos de mãe, relembro o seu otimismo e sua coragem [repito: até hoje incompreensíveis, diante de tantos padeceres], relembro a casinha, a bica d’água... a estradinha por onde deixamos aquele mundo e reiniciamos a trajetória a partir do humilde chalé... comparo tamanha simplicidade à minha formação de Física Nuclear... Torna-se ainda mais absurdo, mais descabido o poder das favas tocadas pelas mãos de mãe. Mas é claro: eu não sei o que é isto que as pessoas chamam de “fé”. Escapa-me ao entendimento, à mente lógica e fria.

[Desterro, 02 de fevereiro de 2012]

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 02/02/2012
Código do texto: T3477230
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.