[A Mosca e o Tempo]

[As tramas sutis da memória]

O cheiro renitente do capim meloso amassado, e mais o calor sufocante e pegajoso... Dá vontade de entrar com cavalo e tudo na corredeira fria do riacho! Apeio-me no terreiro da tapera, mas paro antes de entrar, esperando um vivente que ali não há.

Silêncio... só o vento chiando na palha do coqueiro. Ouço um zumbido, e, para o meu espanto, pois não tem gado nenhum por perto e as bostas do chiqueiro já esturricaram de secas, surge sem como e não sei de onde, uma mosca varejeira.

Entro na tapera —; são dois quartinhos uma salica de nada, com uma só janela, e ao lado, a cozinha toda esfumaçada do fogão de lenha.

[A mosca zune em volta de mim como se quisesse me tocar dali]

Nada há que preste ali, restos de pobreza de fazer dó... um coador de café, perna quebrada de banco de madeira, pedaços se sedenho amarrados nos caibros ainda com restos dos cachos de bananas, pedaços de arame farpado com uma cabaça velha de borco a modo dos ratos não chegarem até os arreios pendurados nas forquilhas de goiabeira.

[A mosca insiste, incomoda-me, esvoaça, volteia e volteia sobre mim]

Os pedacinhos de pano vermelho, os restos de uma caixa de pó-de-arroz, alguns carretéis de linha de costura, dão notícia de presença da mulher.

[A mosca pousa no meu pescoço, dou-me tapas, mas sem conseguir acertá-la].

Sinto uma coceira nas pernas, em tapera abandonada como essa, ninguém sabe por que, aparecem logo piolhos e pulgas, uma verdadeira infestação!

Agora, sinto falta do cheiro do capim meloso, pois aqui dentro, o ar está cheio de morte. Saio no terreiro e o bendito sol aquece e conforta o meu corpo novamente. Respiro fundo, aliviado!

Há quanto tempo não mora gente ali? Cadê as vozes deles, os gritos? Os seus sonhos simples, o choro de dor de barriga, curada apenas com chazinho de mentrasto, a fazeção de sabão de bola, os gritos com o gado, a bateção de pastos, a preparação para as festas, as rezas pra chover... Cadê, cadê a vida?

Neste instante, fora da tapera, a mosca deu-se por satisfeita, zumbiu um pouco mais longe do meu ouvido, alteou o voo sobre a tapera e sumiu. Já tinha cumprido o seu papel — eu me lembrei de tudo!

[Penas do Desterro, 20 de agosto de 1998]

Excertos do meu Caderno 2

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 29/02/2012
Reeditado em 01/03/2012
Código do texto: T3526857
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