A varanda do frangipani (7º capítulo), de Mia Couto

a confissão de Nhonhoso

Falou com o velho português? Aposto que ele lhe contou sobre daquela vez em que ele estava sentado por baixo do frangipani. Pois, me lembro bem dessa tarde. Cheguei à varanda e vi o velho branco adormecido. Suspirei, aliviado: o que ia fazer exigia muita sombra e poucos olhos. Me cheguei no ante do pé, puxei a catana ao alto e desferi o primeiro golpe. A lâmina entrou fundo no suave tronco. Nunca pensei que o branco despertasse. Me enganei. Xidimingo repentinava, esbracejante:
 — Que estás fazer, caraças de tu!
 — Não está ver? Estou cortar essa árvore.
 — Pára com isso, Nhonhoso da merda, essa árvore é minha.
 — Sua? Suca mulungo, não me chateia.
 Nunca tínhamos falado assim. Domingos Mourão, o nosso Xidimingo, se levantou e, aos tropeços, se atirou contra mim.
  Os dois brigámos, convergindo violências. O branco me solavanqueou, parecia transtornado em juízo de bicho. Mas a luta logo se desgraçou, desvitaminados o pé e o soco. Só os nossos respiros se farfalhavam nos peitos cansados. Os dois nos sacudimos, desafeitos.
  — Você sempre quer mandar em mim. Sabe uma coisa: colonialismo já fechou!
  — Não quero mandar em ninguém...
  — Como não quer? Eu nos brancos não confio. Branco é como camaleão, nunca desenrola todo o rabo...
  — E vocês, pretos, vocês falam mal dos brancos mas a única coisa que querem é ser como eles...
  — Os brancos são como o piripiri: a gente sabe que comeu porque nos fica a arder a garganta.
  — A diferença entre mim e você é que, a mim, ficam cabelos no pente enquanto a você ficam pentes no cabelo.
  — Cala, Xidimingo. Você é um arrota-peidos.
  O velho branco riu-se sozinho. Depois, se ocupou em ajeitar o corpo. Lhe doía a garganta como um torcicolo em pescoço de girafa. Ficou um tempo imóvel, olhos semicerrados. Parecia desmaiado.
  — Você está respirar, Mourão?
 — Ouve, Nhonhoso: quer apanhar mais outra vez?
  — Você é que apanhou maningue, seu velho branco...
  — Deixa-me descansar um bocado e já lhe despacho uma boa murraça.
  — Para me dar um murro você precisa descansar um século...
  Nos olhámos sérios. De repente, ambos desatámos a rir.
Batemos as mãos, chapámos as palmas, em acordo. Aquilo havia sido briga de disputar gafanhoto, bicho sem fruto nem carne.
  Então, lhe disse:
  — Eh pá, Xidimingo, estou-lhe a agradecer bastante.
  — Porquê?
  — Charra! Eu quase ia morrer sem bater um branco.
  — Chamas a isto bater? Recebi foi carícias...
 — Nada. Lhe arreei umas autênticas porradas.
 — Nhonhoso, me diz uma coisa, seu velho vagabundo: que motivo você tinha de cortar essa árvore?
Pousei a catana por baixo do banco. E expliquei: não havia outra intenção senão ajudar Nãozinha. A pobre já esgotara as ervas de nkakana nas imediações do forte.
  — Mas para é que ela quer tanta nkakana?
  — Para puxar o leite, avivar as mamas.
  — Leite? A velha tem mais de noventa.
  Falávamos de Nãozinha, essa que amamentava filhos de imaginar, meninos abandonados durante a guerra. Eram os netos, dizia. A velha se tinha vertido no centro das falas. Diziam: ela matou o marido para ficar com os filhos e matou os filhos para ficar com os netos. Diziam e dizem. Não sei. Sei que Nãozinha tinha sido expulsa de casa, depois das mortes,acusada de feitiçaria.
  — Essa velha é doida, Nhonhoso...
  — Não sei, mulungo, não sei. Eu neste mundo já não ponho certeza. Até já me pergunto: o chifre nasce antes do boi?
  O velho branco se debruçou a apanhar uma flor que tombara da árvore. As flores do frangipani eram alimento para os olhos do português: ele as via cair, como escamas do sol, brancas transpirações das nuvens.
  — Estou quase para morrer, Nhonhoso. Já o céu para mim começa mesmo em cima dessas folhas, já quase lhe posso tocar...
  Estremeci ao escutar estas palavras. Aquele branco tinha sido tão companheiro dos últimos anos que eu me inimaginava sem a existência dele.
  — Nada, mulungo. Ainda havemos de sentar muitas vezes nesta varanda.
  — Estou velho, meu irmão. Tão velho que até me esqueço de ter dores...
  Os olhos dele se encheram de perfume. Estendeu o braço e tocou o frangipani como se a partir daquela singular árvore ele fabricasse uma floresta inteira, sombras e chilreinos.
  — Toque também você, Nhonhoso, veja como faz bem ao seu corpo.
  Foi nessa altura que, olhando as minhas mãos, me alarmei:
  — Eh pá, Mourão: me roubaram as unhas!
  — Mostra cá. Com certeza, foi nessa porrada que te dei, lhe caíram as garras...
  — Não. Não vê que foram cortadas com lâmina? Isso foi serviço de Nãozinha, a gaja me quer fazer feitiço com minhas unhas.
  Aquele incidente me angustiava a ponto de lágrimas. O português me disse, então, uma coisa que nunca hei-de esquecer:
  — Não tenha medo, eu também sou feiticeiro.
  — Feiticeiro?!...
  — Conheço feitiços dos brancos. Fica descansado, ninguém lhe vai fazer nada.
  Mas não eram apenas receios que me assaltavam. Eu estava triste de inflamejar os olhos:
  — É que aquelas eram minhas últimas unhas. Não vou ter vida para me crescerem outras novas.
  — Ora, você, Nhonhoso, ainda vai viver muita unhada. Sei quando uma pessoa vai morrer: é quando acorda com o umbigo nas costas.
  — Não me faça rir.
  — É verdade: nascemos com o umbigo na barriga, morremos no oposto. Meu tio, por exemplo, acordou-se com a barriga no inverso lado. Nesse mesmo dia se despediu.
  — Você, mulungo, você só me faz rir. Você é boa pessoa.
  — Aí é que você se engana, Nhonhoso: eu não sou bom. Sou é muito vagaroso nas maldades.
  O velho branco se afastou, encantinhando-se. Ficou mexendo os dedos, atento em acertar contagens. Por que dedilhava ele numerações em cada mão? Também receava ter perdido unhas?
  — Estou a contar os dedos, a ver se me faltam...
  Temia as lepras que abundavam por ali. Me ri, já dado a disposições:
  — Eh pá, já viu, Mourão? Lutámos, nós!
  — Foi bom, lhe dei um soco mesmo em plenas fuças.
  — Porra, até parecia Frelimo contra colonialismo.
  — Nós brancos, sempre ganhámos. Durante quinhentos anos vencemos sempre. Nós é que tínhamos as armas...
   O português, coitado, mantinha aquela ilusão. Ele não entendia o passado. Não foram armas que nos derrotaram. O que aconteceu é que nós, moçambicanos, acreditámos que os espíritos dos que chegavam eram mais antigos que os nossos.
  Acreditámos que os feitiços dos portugueses eram mais poderosos. Por isso os deixámos governar. Quem sabe suas histórias eram mais de encantar? Também eu, no presente, gostava de escutar as histórias do velho português. Uma vez mais, lhe pedia que me entretivesse de fantasias.
  — Estou cansado, Nhonhoso.
  Lhe cansavam, sim, as coisas sem alma. Ao menos a árvore, dizia ele, tem alma eterna: a própria terra. A gente toca o tronco e sente o sangue da terra circulando em nossas íntimas veias. E ficou, parado, murchas as pálpebras.
  — Você está respirar, Mourão?
  — Estou, Nhonhoso. Agora fica caladinho para escutar o mar...
  Ficámos a olhar a enganosa quietude do mar. No céu farinhavam as primeiras estrelas.
  — Mas essa árvore, por que você lhe põe tantas importâncias?
  — Me deixe conversar com o mar.
  Voltei atrás e me sentei ao lado do português. Senti, naquele instante, tanta pena dele. O homenzito iria morrer aqui, longe dos antepassados. Seria enterrado em terra alheia.
  Ele, sim, estava condenado à mais terrível das solidões: ficar longe dos seus mortos sem que, deste lado da vida, houvesse familiar que lhe deitasse cuidados. Nossos deuses estão aqui perto. O Deus dele está longe, para além das vistas e das visitas.
  — Você reza a Deus, Xidimingo?
  Ele negou com a cabeça. Respondeu que só rezava quando não queria falar com Deus. Eu me ri, para disfarçar a gravidade da ofensa.
  — Sabe Nhonhoso: eu já ganhei muita desilusão com Deus.
  — Então?
  — Por exemplo-me: esse Deus é muito preguiçoso, você sabia?
  — Mentira. Deus segura estrelas, milhões delas em milhões de noites. Alguma vez se cansou?
  — Estou-lhe a dizer, o tipo é um preguiçoso.
  — E por que diz isso?
  — Porque ele não trabalha: só faz milagres.
  — Desdiga isso, mano. Que isso é pecado criminal.
  — Nem Deus quer saber de pecado. A única coisa que Deus quer, sabe qual é? Ele quer é fugir do Paraíso. Pirar-se daquele asilo.
  — Bom, lá nisso, somos parecidos com Deus.
  O branco, de repente, cansou daquele falatório. Invocou que estávamos para ali perdendo salivas quando o assunto era a maneira como eu tinha maltratado o seu frangipani. Disse que nós, os pretos, não podíamos entender, nós não gostamos de árvores. Aí eu me zanguei: como não gostamos de árvores?
Respeitamos como se fossem família.
  — Vocês, brancos, é que não sabem. Pois vou-lhe ensinar uma coisa que você não conhece.
  E lhe contei sobre a origem do antigamente. Primeiro, o mundo era feito só de homens. Não havia árvores, nem animais, nem pedras. Só existiam homens. Contudo, nasciam tantos seres humanos que os deuses viram que eram demais e demasiado iguais. Então, decidiram transformar alguns homens em plantas, outros em bichos. E ainda outros em pedras. Resultado? Somos irmãos, árvores e bichos, bichos e homens, homens e pedras.
  Somos todos parentes saídos da mesma matéria.
  Assim falei. Mas o português parecia não ter ouvido nada.
  Sacudiu a cabeça e disse:
  — Você não entende, não pode entender. Eu vejo vocês sonharem com grandes carros, grandes propriedades...
  — E você sonha com pequenices?
  — Eu só ambiciono ter uma árvore. Os outros querem florestas, eu só quero uma arvorezita que eu possa cuidar, ver crescer, florir.
  — Você fala de Nãozinha, suas malucarias. Ao menos os sonhos dela abastecem crianças.
  A conversa já nos saturava. Resolvemos nos deitar ali, no relento. Estávamos cansados de dormir lá dentro das casas, escutando a velharia a ressonar, assaltados por piolhos, ratos e baratas. Nos deitámos ali, um junto e outro ao pé. Já nos íamos amolecendo foi quando Mourão me sacolejou:
  — Eh pá, não vale a pena encostar-se muito.
  Será que ele confundia meu desejo de aquecimento?  
  Quando eu já acreditava que ele dormisse ainda lhe ouvi:

  — Nhonhoso, está sonecar?
  — Ainda. O que se passa, meu irmão?
 — É uma coisa que nunca encontrei ocasião de dizer. É que nós, brancos, parece temos as pilas pequenas.
  — Também ouvi dizer assim. Mostra lá sua, Xidimingo.
  — Está maluco? Não posso mostrar. Depois de uma pausa, ele disse: Você, se quer, estreita.
  O português levantou o elástico das calças, encolhendo toda a barriga.
  — É verdade, confirmei.
  — É verdade como?
  — É quase um bocadinho pequena.
  O português não aceitou a conclusão. Reclamou. Eu não queria uma nova discussão. E, logo, nos acertámos:
  — Amanhã, de manhãzinha, vamos comparar quando elas estão ainda acordadinhas, em serviço de horas-extras.
  Adormecemos naquele sono de velho que é leve e breve. De vez em quando, eu conferia a respiração do tuga. A meio da noite ele me estremunhou, apontando-me o dedo:
  — Nhonhoso, você está sonhar, seu malandro...
  — Eh pá! E você me abana assim, quase me partia o sonho?!
  — É bem feito que é para não sonhar mais...
  — Eh pá, Mourão, deixe disso. Me desmistifique lá esta dúvida: será que sonhamos sempre com mulheres? Eu sempre sonho com a mesma mulher...
  — Quem é?
  — É Marta, mesmo. Também quem manda a gaja despir-se aí, em frente de todos?
  — Cá eu gosto de estreitar é a mulher do chefe, essa mulatona...
  — Ernestina? Cuidado, você: Excelêncio ainda lhe arrebenta o olho espreitador.
  E voltámos a nos deitar. Nós, velharias, demoramos a chegar ao chão. Em nossa idade cada movimento pede um corpo que já não temos. O branco me tocou a pedir uma faca, um pedacito de lâmina que fosse.
  — É para quê uma faca?
  — É para eu sonhar também.
  Sonhar? Ri-me. O velho Mourão acreditava que só sonhava quando sangrasse. Ele insistia que era verdade. O sonho não lhe vinha se não corresse esse vermelho de dentro. Xidimingo, nessa noite, não havia maneira de ganhar sossego:
  — Nhonhoso?
  — Me deixa dormir, Xidimingo.
  — É só mais uma pergunta: você já viu a garça a adormecer?
  — Já, porquê?
  — Ela tapa a cara com a asa, como o homem quando chora. A garça tem vergonha de dormir as vistas do mundo. Assim deveríamos fazer em hora de adormecer...
Finalmente, foi vencido pelo sono. Eu esperava aquele momento. O português falara nas garças que se cobrem com as próprias asas. Minha garça era Marta Gimo. Ela dormia nua sobre a terra, fizesse frio, tombasse chuva. Se cobria com os próprios braços. Era eu que, noites sem fim, lhe salvava do frio. Marta não sabia, ninguém sabia. Aquela noite, me levantei para ir espreitar aquela que eu tanto queria.
  Levei comigo a manta, para a eventualidade de uma ajuda.
  Enquanto caminhava para as traseiras da cozinha, onde Marta costumava dormir, fui-me rindo de mim para mim. Aquela andança de manta às costas era o que me restava de um glorioso passado de ladrão de solteiras, namoradeiro de fama e proveito. E pensei:
  — Antes eu cobria-as com meu corpo, agora lhas tapo com cobertor.
  Me ria sozinho quando vi Vasto Excelêncio passar. Vinha com passo furtivo, evitando ser visto. Se dirigia para os lados da cozinha. Desapareceu entre arbustos. Quando o voltei a ver estava ele falando com Marta. Estavam sentados, muito juntos.
  Discutiam? Sim, Marta se zangava.
  De repente, ele lhe colocou as mãos nos ombros como que a obrigar a deitar-se. Marta lutou. De imediato, me decidi intervir. Há muito, porém, que perdi idade para as vias do facto. Logo, no primeiro passo, escorreguei e caí mais comprido que o chão. Me tentei levantar mas, de novo, me trestrapalhei. Quando, enfim, consegui chegar junto de Marta já Vasto tinha escapado. A moça chorava. Assim que me viu, ergueu o braço a mostrar que não me queria perto. Filho de uma quinhenta, esse Vasto tinha magoado aquela que eu tanto amava.
  A raiva decidiu por mim: eu tinha que encurtar os gasganetes desse satanhoco. Corri a emboscá-lo no fundo do corredor onde ele acabaria por passar. Quando se aproximou saltei com inesperadas forças que fui buscar no passado. Lhe empurrei para a parede, esmaguei a cara do gajo contra o muro, tapei o focinho dele com a manta até lhe tirar o respiro final.
  Passou-se assim mesmo, inspector. Fui eu que tirei a vida desse mulato. Matei por amor. Um velho como eu pode amar. Pode amar tanto que mata.
 
Mia Couto
Enviado por Germino da Terra em 18/03/2012
Código do texto: T3561149
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