A varanda do frangipani (13º capítulo), de Mia Couto

 

a confissão de Marta

O culpado que você procura, caro Izidine, não é uma pessoa. É a guerra. Todas as culpas são da guerra. Foi ela que matou Vasto. Foi ela que rasgou o mundo onde a gente idosa tinha brilho e cabimento. Estes velhos que aqui apodrecem, antes do conflito eram amados. Havia um mundo que os recebia, as famílias se arrumavam para os idosos. Depois, a violência trouxe outras razões. E os velhos foram expulsos do mundo, expulsos de nós mesmos.
  Você se há-de perguntar que motivo me prende aqui, nesta solidão. Sempre pensei que sabia responder. Agora, tenho dúvida. A violência é a razão maior deste meu retiro. A guerra cria um outro ciclo no tempo. Já não são os anos, as estações que marcam as nossas vidas. Já não são as colheitas, as fomes, as inundações. A guerra instala o ciclo do sangue. Passamos a dizer: “antes da guerra, depois da guerra”. A guerra engole os mortos e devora os sobreviventes. Eu não queria ser um resto dessa violência. Ao menos, aqui na fortaleza, os velhos inventavam outra ordem na minha vivência. Eles me davam o ciclo dos sonhos. Seus pequenos delírios eram os novos muros da minha fortaleza.
  Houve tempo que a cidade ainda me tentou E ainda ensaiei me instalar por aquelas bandas. Mas eu lá adoecia de um mal que pão tem nome. Era como se desaprendesse as mais naturais funções: escutar, olhar, respirar. Houve um tempo em que pensei poder mudar esse mundo. Mas hoje desisti. Aquele é um corpo que está vivo graças à sua própria doença. Vive do crime, se alimenta de imoralidade. Você, por exemplo, lá na polícia. Você não se interroga quanto tempo vai levar até ficar contaminado pela doença dos subornos? Sabe bem a que me refiro: investigações que se compram, agentes que se vendem.
Tiraram-lhe a investigação dos negócios de drogas.
  Transferiram-no da secção de estupefacientes. Porquê? Você bem sabe, Izidine. E por que motivo o enviaram para aqui, longe dos rebuliços? Deixe, eu mudo de assunto. Afinal, é sobre mim que me devo espraiar.
Vê aquele edifício, além, todo em ruínas? Aquilo já foi uma enfermaria. Era ali que eu trabalhava. Recebia medicamentos da cidade. Mas o asilo foi atacado, semanas após eu ter chegado.
  Os bandos entraram aqui, roubaram, mataram. Lançaram fogo sobre a enfermaria. Morreram duas velhas. Não morreram todos graças a quem? Espante-se, caro Izidine. Graças a Vasto Excelêncio. Se admira? Pois foi Vasto que entrou pelas chamas adentro, arregaçando coragem e salvando os outros doentes. Do edifício restaram chamuscadas paredes.
  Depois da tragédia, eu fiquei como aquelas ruínas.
Sobretudo quando soube que a principal razão do ataque tinha sido eu própria, Marta Gimo. Os bandidos me queriam raptar, conduzir-me para os acampamentos deles. Levei tempo a refazer-me daquele incidente. Nunca me refiz totalmente. A guerra deixa em nós feridas que nenhum tempo pode cicatrizar.
  Pedi a Excelêncio que mandasse vir novo recheio para reinstalar o centro sanitário em meu próprio quarto. Nessa altura, já tinha deixado de dormir sob aquele tecto. Mas os helicópteros militares que iam e vinham não tinham disponibilidade. Havia outras prioridades, me respondia Vasto Excelêncio. Perdi essa possibilidade de me reinventar.
  Reconstruindo a enfermaria eu muito me teria refeito.
  Sem o centro e sem medicamentos eu me privei de motivos de viver. Não pode imaginar como me era imprescindível o trabalho na enfermaria. Aquele era o meu hospitalinho, ali eu me exercia a bondades. Deve compreender: eu fui educada como uma assimilada. Sou de Inhambane, minhas famílias já há muito perderam seus nomes africanos. Sou neta de enfermeiros. A profissão me reaproximava da família que eu há muito perdera.
  Não que o trabalho na enfermaria tivesse sido fácil. No princípio, eu quase desistia. Entrava no aposento e sentia o cheiro da coisa apodrecida. Eu perguntava sobre a origem de tais odores. Os velhos apontavam o vão das bocas. Aquele bafo provinha das almofadas, das nocturnas babas dos desdentados.
  Ainda acreditei. Depois, vi que não era assim. O cheiro vinha as sobras de comida que eles escondiam debaixo dos travesseiros. Protegiam esses restos com receio de serem roubados. Os velhos fabulavam tanto que às vezes inventavam comidas que, sob os travesseiros, nem chegava a haver.
  Vou-lhe dizer: estas histórias que você está a registar no seu caderno estão cheias de falsidades. Estes velhos mentem. E mais irão mentir se você continuar a mostrar interesse neles.
  Há muito que ninguém lhes dá importância. Uma das mentiras era do Salufo, dizendo que era querido pela família. Não era verdade. Ele fazia de conta que tinha posses só para ser amado. Nãozinha se inventou de feiticeira. Tanto que acabou por duvidar de seus poderes. Também eu me refiz de mentiras, como se a mentira fosse a pele que nos protegesse mas que, de tempo em tempo, nos tivéssemos que desfazer.
  Há muito tempo, antes de vir para este asilo, fui enviada para um campo de reeducação. Me desterraram nesse campo acusada de namoradeira, escorregatinhosa em homens e garrafas.
  Nenhum dos meus colegas, no Hospital, se levantou para me defender.
  Hoje, lhe digo, inspector: a vida é um cigarro. Eu gosto apenas é da cinza, depois do cigarro fumado. Nesse campo em que cumpria a sentença eu me degradava a custo de sexo, bebida e seringa. Nem queria saber de futuros. Me interessava apenas o instantâneo momento. O voar não vem da asa. O beija-flor, tão abreviadinho de asa, não é o que voa mais perfeito?
  Foi nessa circunstância que Vasto Excelêncio me encontrou.
  Ele tinha poderes, me retirou dali na condição de eu exercer enfermagem no asilo. Foi assim que vim parar aqui, nesta fortaleza. No início, me inconsolava com este degredo. Para além da enfermaria, não tinha com que desocupar o tempo. De tal maneira que deixei de sonhar. Só os pesadelos me visitavam. Eu estava aleijada desse órgão que segrega as matérias do sonhar. Eu estava doente sem doenças. Sofria dessas maleitas que só Deus padece. Aconteceu assim: primeiro, me acabou o riso; depois, os sonhos; por fim, as palavras. É essa a ordem da tristeza, o modo como o desespero nos encerra num poço húmido.
  Foi isso mesmo que sucedeu com Ernestina. Espere, já chego nela. Eu quero só que entenda a total carência que, no momento, pesava em minha vida.
  Foi nesse afundamento que me apaixonei por Vasto. O amor não é o irremediável remédio? Um dia, ele se chegou e me surpreendeu em flagrante lágrima. Me enxugou o rosto. Não sei se conhece o mandado: quem limpa lágrima de mulher fica amarrado em nó de lenço?
  Eu e Vasto nos passámos a encontrar de noite. No princípio, ele me pareceu falso como o azul que está no mar sem lá se encontrar. Mas tudo esconde intrincados segredos. Falo da água, do mar. Que posso eu saber? Os únicos que conhecem a verdadeira cor do mar são as aves que olham de um outro azul.
  Me faço desentender? É que eu conheci Vasto, um homem cheio de angústia, num momento em que eu própria me estreitava, amarga e pouca. Vasto se sentia traído. Os melhores anos de sua vida ele os dera à revolução. O que restava dessa utopia? No início se descontaram aparências que nos dividiam. Com o tempo lhe assaram a atirar à cara a cor da pele. O ele ser mulato esteve na origem daquele exílio a que o obrigavam. Desiludido, ele não se aceitava. Tinha complexo da sua origem, da sua raça. essa altura eu não sabia que, bem vistas as contas, todos nós somos mulatos. Só que, em alguns, isso é mais visível por fora. Vasto Excelêncio, porém, foi ensinado a dar-se mal com sua própria pele. Falava muito sobre a raça dos  outros. Castigava de preferência o pobre Domingos. Para que ficasse patente que não privilegiava os brancos. Exercer maldades passou a ser a única maneira de ele se sentir existente.
  Todavia, eu cheguei a amar esse homem. Confesso-o, não fique ciumento. Eu o desejava, sim, ele inteiro, sexo e anjo, menino e homem. Se era bonito? E isso o que interessa, me pergunto. Quem quer saber de beleza? Num homem eu quero é tocar a vida. É isso que eu quero. Quero sentir-me pequena, estrela em céu, grão em areia. Rectifico: era isso que eu queria. Nessa altura, eu ainda via os homens como as aves entendem a nuvem: um lugar onde se pode passar mas nunca habitar. Mas tudo isso foi noutro tempo, eu era ainda uma menina. Vasto ainda me dedicava estranhos namoros. Antes de me tocar pedia-me que chorasse. As lágrimas me escorriam e ele as sorvia como se fossem a última água. Aquela era a fonte que lhe dava alento. Mais que minha própria carne. Hoje, que já não choro, entendo Vasto. Pela lágrima nos despimos. O pranto desoculta a nossa mais íntima nudez.
  Até que engravidei. Meu corpo, em segredo, se declarava portador de outro corpo. Não quis dizer a ninguém. Eu trazia a barriga à socapa, não se notava nenhuma redondura. Mas, para meu espanto, Ernestina me visitou um desses dias. E me perguntou:
  — Quando será?
  Eu nem sabia responder. Ernestina parecia deter não apenas aquele segredo mas toda a minha vida mais privada. Me encarou fundo, sem nenhuma raiva. Só uma mulher pode olhar assim. Eu já nem dava conta de meus olhos. De que serviço eles se ocupavam quando fixava na Ernestina? Me abri, honesta como um diário de adolescente. E lhe disse:
  — Vou tirar esta criança.
  — Vai tirar como?
  — Sou enfermeira, sei como fazer.
  E me fechei, calada. Que palavras eu podia ajeitar, naquele momento? A mulher do director se baixou sobre mim e colocou-se à distancia de uma maldade. Ernestina me queria punir por minhas levianades? Não. Ela simplesmente se ajoelhou e encostou a palma da mão no meu ventre. E ficou assim, sonhatriz.
  — Nota-se assim tanto?, perguntei.
  — Eu notei antes mesmo de acontecer.
Depois, tristonta, ela implorou:
  — Me entregue esse menino.
  Ernestina me segurava a mão. Fiquei um tempo sem saber o que pensar. Não, não havia que hesitar: eu tinha que interromper aquela gravidez. Abanei a cabeça a mostrar o impossível do pedido. Ernestina se levantou com modos solenes, parecia acabada de comungar. Olhei para ela, cheia de espanto.
  Já antes eu notara suas estranhezas. Ela costumava se anichar, horas, na sombra do frangipani. Orava? Falava com Deus? Ou simplesmente adiava o gosto de viver? Há muito tempo eu também rezei, rezei muito. Depois desisti. Rezamos tanto mas sempre os dias são mais que o pão.
  Dessa vez, Ernestina me voltava a surpreender. Ela entendera quanto eu recusava ser mãe. Rodou pelo quarto como se procurasse qualquer coisa. Depois, parou à minha frente e começou a desabotoar a blusa.
  — Veja!
  Seus seios, cheios, me desafiaram. A beleza dela estava ali em instigante mostra. Ela se provocava, acariciando os próprios mamilos. Passeou as mãos pelo peito, desceu-as ao ventre. Seus dedos namoravam consigo mesmo. Se chegou a mim, baixou a voz, insinuosa:
  — O menino há-de mamar aqui, nestes seios de mulata.
  E assim mesmo, sem se compor, bateu a porta e saiu. Depois de ela se retirar fiquei sem palavra. Dentro da boca faz sempre sombra. Mas eu estava em inteira penumbra. Deixei-me entardecer nessa ausência de mim mesma. Até que, às tantas, o próprio Vasto Excelêncio deu aparição. Vinha grave. Antes mesmo de me saudar, disse:
  — Já sei.
  Ao contrário de Ernestina, ele não me dedicou nenhum afecto. O homem fugia-se, enevoado. Mentia ou se revelava agora tal igual era? O orvalho é falsificador de pérolas?
  Vasto abordou o assunto, rápido. Aquela barriga devia ser corrigida o mais rápido possível. Sendo ele o único homem em função, ali no asilo, as suspeitas recairiam sobre ele. Sim, quem mais podia ser o autor? E ele, coitado, até podia perder posto e vantagens. Eu sorri, em desconsolo. Vasto entrara no pilão mas queria sobrar intacto. Homem é homem? Ou, simplesmente, não há nariz sem ranho? Quando dei conta, as lágrimas me escorriam, rosto abaixo. Ainda pensei que Vasto se inclinasse a beber aquelas gotas. Mas não. Nunca mais eu lhe voltaria a servir de fonte.
  Nãozinha me visitou essa noite. Também ela já sabia da gravidez. A velha trazia um sorriso de anjo. Agora, não preciso de inventar, disse. Vou ter um de verdade, um menino para amamentar.
  E já ela, no arco dos braços, ensaiava um embalo de ninar.
  Fiquei de olhar vago, fumacento. O meu estado, as palavras de Nãozinha, tudo me parecia irreal.
  Nãozinha se deixou ali, adormecendo na cadeira. Não me podendo ordenar por dentro fui arrumando coisas até que a feiticeira despertou em sobressalto. Abanava a cabeça, enxotando um mau presságio.
  — Não tenha, não tenha essa criança!
  E sem mais, agitando os braços, a velha se desatou do meu lugar. Sobrei ali, crepuscalada, sem saber o que pensar. A quem eu, afinal, haveria de obedecer? A Vasto, preocupado só consigo mesmo? A Nãozinha mais seus azedos pressentimentos? Ou a Ernestina, querendo ser mãe em filho de outra? Pensando bem, a fortaleza não tinha condição para nascenças. Por outro lado, eu também não tinha vontade de sair dali. Me dava conta que me feiçoara ao lugar, àquele mesmo lugar que tanto maldiçoara.
  Por herança do hábito, me costumei a aceitar destinos, sem nunca assanhar os deuses. Confusa, incapaz de tomar decisão, fui dando andamento à minha barriga.
  Este mundo tem suas trapaças. Em lugar de Vasto, passei a ser visitada por Ernestina. Me trazia comidas e doces que ela preparara. Me aconselhava a descansos e anexas sopas. Era como se aquela criança fosse já sua, como se a minha barriga crescesse em seu próprio ventre. Lhe disse de minhas dúvidas.
  Eu ainda ia a tempo de desencomendar o feto. Ela levou as mãos ao rosto, afligida:
  — Não, não faça isso.
  Não o faça, repetia, agarrando-me as mãos. Soltei os braços, lhe segurei o rosto. A mulher falava sem pausa, não se dando tempo a respirar. Tive que erguer a voz:
  — Mas Vasto não quer esta gravidez.
  — Vasto não tem nada com este assunto. Esse menino que você traz consigo é meu filho, você fez amores foi comigo não foi com Vasto. Entende? Esse é o nosso filho, só nosso.
  As palavras dela me assustavam. Senti uma terrível urgência de me ver livre daquela conversa. Fui abrupta:
— Vasto é o pai. Eu tenho que o ouvir.
  Ela caiu em si, como se tivesse sido espancada. Deixou cair a cabeça sobre o peito e ficou lutando consigo mesma até que, levantando o cabelo da testa, me disse:
  — Se esse menino morrer, Vasto morrerá também!
  Me senti acudida pela força daquelas palavras. Ernestina não enchia a boca de falsa promessa. Ela já não tinha as costas quebradas. Assumia porte de rainha. Com essa altivez, pousou a mão em meu ombro e me sossegou:
  — Não se preocupe, me entregue o menino. Eu vou levá-lo para longe, lhe dou um bom crescer.
  Nos restantes meses, toda eu me dediquei a arredondar. Mais eu me luava e mais Ernestina tonteava por descondizentes palavras. Já se dizia também ela ser mãe. Tomava ela mesma as preventivas vitaminas. Fazia respirações em preparos de parto.
  E bordava roupinhas. Me apontava e se incluía:
  — Nós, ambas as mães!
  O impensável aconteceu: também o ventre de Ernestina inchou, circunsequente. Era gravidez da autêntica? Ou era obra de fantasia? Na minha terra a gente costuma perguntar: uivar de cão se escuta de dia? Vasto, surumático, aguardava o primeiro helicóptero. Exportaria a incessante esposa. Ernestina não dizia coisa nem coisa. O helicóptero veio e embarcámos as duas. Rumámos à cidade, nos internaram em distintos hospitais.
  Na noite que antecedeu o parto fui assaltada por estranhas visitações. Em sonho me apareceram os velhos do asilo.
  Traziam-me flores de frangipani. Me rodearam como se de um velório se tratasse. Nãozinha pousou as mãos no meu leito e me contou as recentes ocorrências:
  — Ontem, lá na fortaleza, se deu a espantável acontecência. De repente, o céu se cobriu de morcegos. Os ichos, a surtos e sustos saíram do armazém onde Vasto Excelêncio escondia suas mercadorias. Cinzentos, da cor dos mortos, os vampiros enevoaram o mundo. Um eclipse, parecia. Os bichos rasaram as casas, exibindo dentes e mandíbulas. Se escutaram suas asas como manuais helicópteros militares. Os velhos, aflitos, se abrigaram. Então, os morcegos desataram a atacar as andorinhas. Em plenos ares, eles as devoravam. E eram tantas as avezinhas sacrificadas que respingavam gotas vermelhas em toda a parte. As plumas dançavam pelos ares, caindo com gentileza sobre o chão. Parecia que depenavam as próprias nuvens. Nesse dia, choveu tanto sangue que o mar todo se tingiu.
  Acordei com o médico a meu lado. Me segurava a mão e me dizia:
  — Tenho tanta pena! Fizemos tudo o que pudemos.
  Naquela noite, eu perdera meu filho. Ernestina perdia o seu segundo menino. Olhei o meu corpo, já desabastecido de volume.
  Teriam os deuses atendido meus ocultos desejos de não ser mãe?
  De repente, ali sobre os lençóis, uma visão e sobressaltou. A meu lado estavam brancas flores do frangipani. E adormeci ao consolo daquele perfume.
  Quando regressei ao forte tudo estava como eu deixara. A indiferença de Vasto. A loucura de Ernestina. A ternura dos velhos que me receberam como se, na realidade, eu me tivesse ascendido a mãe. E precisei de aprender a reter as lágrimas quando eles me tratavam de “mamã”. Esses mesmos velhos me ensinavam a cicatrizar essa ferida que rasgara meu útero e minha alma.
  Entende agora a verdadeira razão por que eu durmo sem tecto? É que, na minha terra, as mulheres em luto só se podem deitar ao relento. Até que da morte sejam purificadas. Mas, em mim, a mancha da morte não tem água em que se possa lavar.
  Um dia, mais refeita, decidi visitar Ernestina. Ela regressara do hospital, sem a devida cura. Nesse enquanto, ela emudecera. A escrita era sua única palavra.   Se encerrava no quarto, envolta em penumbra. O papel era sua única janela. A última dessas cartas é essa que lhe entreguei. Lhe passei esse papel com o mesmo coração com que, agora, lhe entrego estas minhas palavras. Como se desembrulhasse as roupas que cobrem o nosso comum filho. Meu e de Ernestina.
 
 
Mia Couto
Enviado por Germino da Terra em 31/03/2012
Reeditado em 31/03/2012
Código do texto: T3586033
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.