Ensaio para a velhice


 
 
 
Eu não quis saber do futuro. Os sons de suas construções e de suas implicações, provavelmente me assustaria e tornaria as palavras que agora acumulo no peito apenas uma formalidade. Apenas exercício sem propósito de um ideal poético tão distante. E sem a poesia que preenche esse esqueleto eu entenderia a música apenas como começo e fim. Mas ela flui. Não há divisão entre seus movimentos.  Não há tonalidade definida. Digo que a única poesia que me sobrou entre o peito e a mão que escreve, é aquela única, verdadeira, que fala  por uma voz que desconheço e que me é tão íntima. Que estende sua verdade na forma de uma brisa petulante. E que irradia, assim como os corpos nos quais estamos presos, um pequeno ensaio da força gravitacional das estrelas e das leis mais elementares da atração.
 
Se o tempo é arbitrário e moldável, então digo que permaneço preso a um instante de uma tarde que ia embora. Lá, entre a terra e a água, avistando o horizonte feito de construções tão pequenas vistas á distância...e a natureza tentando engolir o feito dos homens. Foi nesse momento em que, assentados e entendendo finalmente o silêncio, nos demos conta da finitude e da eternidade.  Enquanto nossas palavras subiam, desimportantes, sabíamos que aquilo eram apenas sons de marcação. Acima de nossas cabeças, enquanto a fala permanecia entrelaçada,  apenas um fraseado se tornava inevitável...era o som consumado.
 
Essa música não é para agora. Essa música é e sempre foi, o som de nosso ranger de ossos de corpos envelhecidos. E vimos mutuamente em nossos olhos, a ingenuidade própria da sinceridade que jamais tivemos. Entendemos que aquilo é o amor. Simplesmente porque não sabíamos explicar. Fugiam-nos as regras e as certezas aprendidas com nossa prisão estrutural. Nós aprendemos todas as regras e reações que deveríamos ter para não nos tornarmos vítimas. Aprendemos a compor com nossas próprias dores, monumentos bélicos apenas para nos defendermos daquilo que nos torna mais despidos e sem vaidade. Mas quando a verdade esteve em nossa frente, sem forma e não exigindo nada, sobrou  apenas o que restou em frente à tarde fugitiva e ás estrelas que teimavam em competir com as luzes artificiais distantes: uma arte ainda sem nome. Um alívio para as chagas de almas jovens e já cansadas, uma nota de repouso para todas as perguntas.
E Deus gritou em meus ouvidos. Gritou enquanto parava o tempo e enquanto nos fazia ver aquilo que sempre soubemos: que ainda veremos mutuamente em nossos olhos, a mesma paz que nunca encontramos em nenhum instante antes do amor. E mesmo acordados, adormecemos para a vida. E não me lembrei de tantas coisas, de tantas esperas e tantas feridas.
 
Então, a arte ficou sem propósito. Calou em meu peito sua necessidade de viver. Tudo, era, enfim, apenas um teste. Tornou-se minha vida, e não meu instrumento. Tornou-se o som e não a música. A mesma que sempre soube existir em algum lugar e que estava, definitivamente guardada, na hora certa em que se deu a colisão que paralisou aos outros corpos em torno das mesas. E o som foi feito apenas de silêncio e verdade. O que me fez chorar enquanto ouvia o tenor falar das estrelas que brilhavam, o que me fez ficar mudo enquanto El Greco estabelecia sua anunciação na parede de um museu e enquanto De Chirico nos retratava em seu arqueólogo de bronze.

Eu não quis saber do futuro. Porque seu retrato é apenas uma versão do nosso agora, com barbas brancas e corpos enfraquecidos. Com pequenas ofensas típicas da rabugice e as mãos dadas simplesmente para que as almas se falem mais facilmente.

Todas as outras horas de nossa vida, estão arquivadas e numeradas como convém a um mundo feito de regras. Mas estabelecida a grandeza da forma que não obedece ao tempo e ás descrições, sei que ainda estou preso num lapso temporal. Até o que agora escrevo e o que em seu peito está guardado, só será compreendido quando for a hora de não sabermos mais nada. Então poderemos dar nomes a algumas coisas, provavelmente: magia, milagre, simetria...não importa...essa arte ainda está para ser inventada.

E envelheceremos, nos tornaremos aquilo que não éramos tempos atrás. Seremos milhões de vozes pulsando dentro do coração. E elas desafiarão os limites da fisiologia. Somente para dizer: eu te amo. Tanto enquanto estivermos caídos nas dores que o mundo traz, quanto quando estivermos novamente em silêncio, entendendo o que estamos, de fato, fazendo aqui. E algo tão grande quanto o abraço de um mundo inteiro, fará novamente a galáxia interromper seu curso. De algum lugar, a mão do grande arquiteto irá romper a barreira de nuvens e tocará nossas frontes que ainda não acreditam, para mostrar ao mundo uma única centelha de amor que reconstrói a esperança.

Não sei dizer se tudo isso escrevo no futuro, já velho e alquebrado, tendo minha outra alma ao meu lado, ou agora,  enquanto sinto seu perfume apenas de memória. Não sei se realmente escrevo ou se simplesmente faço um amontoado de estrelas em um céu recriado. Apenas me limito ao exercício do sagrado e do inevitável, que explode em nossos  peitos como os corações que se encontraram num abraço e aguardam. Não sei se no futuro ou no passado.





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Imagem: escultura em bronze Os arqueólogos, de Giorgio de Chirico de 1968
 
 
EDUARDO PAIXÃO
Enviado por EDUARDO PAIXÃO em 16/04/2012
Reeditado em 16/04/2012
Código do texto: T3616006
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