UM ESPECTRO RONDA O SÉCULO XXI - O ESPECTRO DA MELANCOLIA

UM ESPECTRO RONDA O SÉCULO XXI –

O ESPECTRO DA MELANCOLIA

(breves intuições sobre o filme MELANCOLIA, do cineasta holandês Lars Von Trier)

A pedido da minha Ninfa paulistana,

ANA VALERIA SESSA,

com um beijo do SÍLVIO.

“Eu, mãe de sangue denso, fardo putrefato pesando sobre a terra, quero dizer quem sou, e o que por meu intermédio pode vir a ser. Sou a bílis negra, primeiro encontrada no latim, e agora no alemão, sem ter aprendido nenhum dos dois idiomas. Posso, pela loucura, escrever versos tão bons como os inspirados pelo sábio Febo. Receio apenas que o mundo possa suspeitar de mim, como se eu pretendesse explorar o espírito do inferno. De outra forma, eu poderia anunciar, antes da hora, o que ainda não aconteceu. Enquanto isso, permaneço uma poetisa, e canto minha própria história, e o que sou. Devo essa glória a um nobre sangue, e quando o espírito celeste em mim se move, inflamo rapidamente os corações, como uma deusa. Eles ficam então fora de si, e procuram um caminho mais que terrestre. Se alguém viu alguma coisa através das sibilas, isso aconteceu graças a mim.” ( Melancholey. Poema do poeta alemão Tscherning)

No berçário estelar,

entre os vivos e os mortos,

sustenta-se um muro de pedras milimetricamente encaixado.

Súbito,

a Caverna Mágica expele moléculas gigantes; a mistura de gás e poeira une-se, gerando milhares de pedacinhos, de discos, que começam a girar em torno de si, adquirindo, desse modo, calor excessivo, a ponto de fundir os átomos de hidrogênio: contrações e movimentos, mutações. Gênesis! Nascimento de inúmeros Hélios, de Gigantes Vermelhos, de Apolo, de Antares, do Planeta Melancholia, do Angelus Novus, do Olho do Mundo - daquele que tudo vê.

E no correr das divindades Horas,

Talos, Auxo e Carpo,

nas temporadas das estações,

tudo brota, cresce, frutifica, envelhece, morre e apodrece...

E a memória escorre emporcalhada nas raízes das noites e dos dias do planeta Terra.

A imaginação avança e colidi com abismos... E segue ele fatigado, pois apossado pelo espectro do melancólico príncipe do reino da Dinamarca.

Ei-lo, enfim, com senões, o de sangue nobre infeccionado pelas inúteis mil e uma ações do cotidiano –

ó cotidiano, conspirador que favorece a raça dos cínicos e dos fúteis!

E do fundo escuro ninho, do útero materno, da Caverna Mágica, encantado,

o Novo Édipo assiste ao balé coreográfico, a dança da morte ensaiada pela Tia Invencível, pela Tia Oceânica,

pela Tia Sibila: “_ Havia 678 grãos ...”;

Eis a Nova Justine acossada e a rodopiar em meio às múltiplas razões; como um gênio ou um anjo furioso, Justine é molestada pelo jugo das moralidades; é dominadora e passiva na libertinagem do sexo selvagem; é enclausurada pelo cunhado e teleguiada racionalmente pela irmã, Claire ...

Contudo, o campo de golpe da magnífica mansão é tornado pasto forrado com camadas de tamises: véus tecidos pelas mãos possessas de Justine, cortinas

sadiana (“_ Pai, eu gostaria de falar com você.”/ como retorno, apenas o silêncio do pai libertino),

esclarecida,

técnica,

kantiana,

burguesa (“_ Ela [Justine] arruinou meu casamento, não olharei para ela.”)

platônica,

científica (John: _ “Querida, você [Claire] precisa acreditar nos cientistas.”),

cartesiana,

socrática,

cética (“_ Estou assustada, mãe./ _ Pare de sonhar, Justine.”),

dentre outras,

todas encardidas,

work in progress - em carretéis de linhas de pensamentos enfileirados - em eterno desalinho na temporalidade.

“_ A vida na Terra é má; ninguém vai sentir falta dela.” – afirma a melancólica Justine.

A Tia Invencível é tragada pela corrente d’água;

e a Nova Ofélia, em águas cristalinas, adornada com grinaldas embebidas e emaranhadas em ramagens silvestres pendentes, jaz em morte lamacenta.

” _ E nunca mais voltará? E nunca mais voltará?”

_ Não, não, o mito do amor romântico está morto, há muito repousa nos sepulcros de Tristão e Isolda.

Munido de um metal retorcido preso a uma haste de madeira, Leo acompanha o movimento de aproximação do planeta Melancolia, do sol de Saturno.

Ele, o guardador de lutos, o trágico-romântico, o fora de si, o fora dos lares e dos trilhos,

o Novo Édipo prossegue odiando as cotidianas iniqüidades humanas,

e numa recorrente expectativa de coisas dolorosas,

com o espírito a trilhar o drama musical wagneriano,

circunavegando nos domínios de Eros e Thânatos,

num fragmento do cruel destino de Tristão e Isolda,

brada:

_ Basta de palavras e frases indecorosas, inflacionadas!

Do “logos” ao logo, ao logotipo, ao slogan...

E a imbecil encenação da gestão melindrosa e cínica do sultão burguês a imolar a romântica aventura da noiva por um mero slogan a ser tragado pelo sempre igual, pela indefinição do disperso na coletividade do atual;

e a sensação da vida de qualidade encerrada num corpo desqualificado e composto por desalentadas redes DaNoivA, um anjo decaído arrastando o branco tecido nupcial emaranhado de lã cinza, pesado, em meio a jardins geometrizados, circundando o arquitetado relógio de anel; invadindo bosques, atravessando pântanos, com o rosto cheio de ais e o corpo todo enovelado pelos cordões umbilicais; eis a Nova Ofélia abalada pelos múltiplos murmúrios de razões cativas.

Cais das Constelações: contrações e movimentos e a Caverna Mágica expele líquido, feto, sangue denso, moléculas, placenta, membranas fetais de um espírito em desassossego, um “fardo putrefato pesando sobre a terra”.

Então, na ação em ruminação, em meio à metamorfose da natureza, Leo - que pode anunciar o que ainda não aconteceu - manipula a vegetação, invadido pelo desejo de retorno à fecundidade; ele destrói, então, os projetos dos enclausurados; caminha entre os destroços, antevê os cadáveres e ruma silente ante o destino tumular que lhe reserva as energias naturais.

Porém, os desejos atropelados do sabichão é ser percebido, tumultuar na efervescência social:

“_ Sabes quanto me custou essa festa, Justine? Meu dinheiro!” – adverte o cunhado, John, empresário e administrador, burguês e senhor da razão controladora.

A assinatura dos papéis do casamento é recente, e

somente algumas bananas por um tostão é o valor de troca

das tais lições difusas e fugitivas da razão cativa, cujos tentáculos são as técnicas manipuladas pelos bufões empresariais.

Ah, o ódio às religiões enfraquecidas e

conectadas a um bando de endemoninhados:

_ “Como pode Satanás expulsar Satanás?”

O triste rosto de Édipo em seu jardim secreto prevê a hecatombe,

e ele arranca aos urros as carrancas cravadas em meio aos jardins geométricos e enluarados e desolados dos frágeis rostos humanos.

Frágeis razões humanas!

Leo, ao presentear a tia com uma adaga, parece questionar o que deseja ouvir:

_ Que quer você, Tia Invencível?

Tia Sibila murmura:

_ Eu quero morrer, Leo.

“Conhece-te a ti mesmo” – rumina o instinto maternal de Claire.

Com autodisciplina, Clara declara:

“_ Quero fazer isso de modo certo.” – empunhando mentalmente a taça de vinho ...

[“Dizendo isso,

... estendeu à taça a Sócrates. Este a empunhou (...) dirigindo aos deuses uma oração pelo bom êxito desta mudança de residência, daqui para além. _ É esta a minha prece: assim seja!”]

“ _ Quero fazer isso, Justine, com música.”

Em meditação irada, recusando a cicuta socrática, Justine retruca:

“ _ Com a Nona de Beethoven?!”

“ _ Quero que seja bom... Justine, às vezes eu a odeio.” – responde a desolada Claire.

A aurora raia. À janela da mansão, Claire contempla a luminosidade do dia. Amante da claridade, ela é atraída pela outra face da mesma moeda, isto é, a obscuridade do mundo, a face oculta de Justine.

Aporias ...

O puro objeto do conhecimento não é o suficiente. A condição humana roga por contínuas metamorfoses, por um conhecimento de si, por um criar a si mesmo, experienciando sensações, desejos autênticos; implora em conhecer novas dimensões de si e do outro, pois o sentido da existência não nos é dado: ele deve ser confeccionado ao longo de nossa existência. A condição humana deve reinar como legisladora de si própria, oferecendo, desse modo, unidade à pluralidade.

Contudo, Claire insiste na idealização do belo: casa e quartos organizados, arranjo do buquê, a cama: tudo em absoluta ordem. Claire, nada ociosa, nutre zelo extremoso ao filho, Leo, ao casamento com John e às ocupações do lar...

Tudo ordenado:

roteiro, coerência e autodisciplina para recepcionar os convivas filisteus do casamento da irmã, Justine;

enfim, rumo a’O Banquete...

“Sócrates desde a madrugada está de pé ocupado em suas reflexões! (...) E ele ficou de pé, até que veio a aurora e o sol se ergueu: a seguir foi embora, depois de fazer uma prece ao sol.”

E repetidas vezes são sussurradas as ensolaradas e amáveis solicitações de Claire, temendo a aniquilação da vida no planeta. Entre o “mythos” e o “logos”, entre o anel dos nibelungos e os anéis de Saturno, à luz do planeta Melancolia, Claire se vê cada vez mais atraída pelos sintomas de Justine. Num impulso, a Nova Waltraute prepara, então, o cavalo alado da Nova Brünnhilde:

“_ Justine, acorde, vamos cavalgar.”

O cenário é um vasto bosque, mais distante, o princípio de uma floresta. Ambas irmãs, Claire e Justine, as Novas Valquírias montam em belos cavalos negros; cavalgam rumo às proximidades da futura rude cabana... da Caverna Mágica.

Ora Claire é o triunfo da moral conjugada à coerência:

“_ Não cochile, Justine.” – eis, a Nova Juliette obediente aos mandamentos.

[após O Banquete, tendo-os deixado adormecer, Sócrates levantou-se saiu (...) dirigiu-se ao Liceu, e (...) passou o dia nas suas ocupações habituais...”]

Ora Claire é tremor e fascínio e temor diante das obscuras reações bestiais da irmã:

“_ Justine precisa acordar” – insiste Claire, movida pela racionalidade militante.

O crepúsculo, o caos psíquico da Tia Invencível, guiado pelo filho da Noite e de Hipnos, a torna sonolenta, ela está chorando;

o sobrinho, Leo,

ora a navegar na tela do computador,

ora entre a “physis” e a “téchne”,

ora a manipular o rude instrumento de metal,

ora a fazer uso de um potente telescópio,

contempla as manifestações dos corpos celestes e visualiza a aproximação a galope do planeta viajante, do sol da Melancolia.

E então o penhasco da Valquíria se incendiará e o fogo tudo consumirá: deuses e heróis há tempos esperam por este dia! Caberá somente às Valquírias escolher os sobreviventes.

A paisagem aponta para três figuras vitoriosas em meio à estrutura arquitetônica social burguesa aos pedaços. Uma tríade demolidora, guiada por Thânatos, recolhida numa frágil Caverna - construída com rudes galhos extraídos da natureza destruidora e dominadora e renovadora –, o muro intransponível desmorona, Re-Unindo

a Melancolia, a Poesia e a Filosofia...

O Irracional, o Mythos e o Logos ...

A Mitologia, Édipo e a Contemplação...

Justine, Leo e Claire acomodam-se

no interior da Caverna Mágica;

os três - libertos de si próprios e da alma moderna - retornam à natureza primordial: local propício de onde talvez alguma coisa boa possa brotar nas noites do futuro...

Que encantador elogio à Psicanálise, à Poética e à Filosofia!

Decretado o Crepúsculo dos Deuses, resta o orifício, um alento, a lente, a tela,

e Lars Von Trier proclama:

_ Um espectro ronda o Século XXI – o espectro da Melancolia.

E a trêmula câmera conclama:

_ Serviçais da Melancolia, a Natureza, mãe de todos, só nos fala de nós mesmos. “Contradictio in adjecto”, às favas com as moralidades!

PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS

CAMPINAS, É OUTONO DE 2012.