Santíssima Fúria






Isso não tem resquício de alma.
Nem pode com sua arbitrária prece,
inverter o sentido que a fala tece,
ao subir aos céus pedindo a aniquilação.
Poesia, já não mais se faz,
dilui-se matando a forma, como o amargo que envenena a vida. E mesmo que seja um alívio para dores imediatas, muitas delas, numa tela em branco inventadas, não passam de manifestações de uma vida breve. Porque de eterno, já basta o que a esse fim se presta. Quero é dormir, para conter a fúria. Não é dor nem tristeza, não é fuga nem incerteza. É prosa da pior qualidade, gritando dentro de um heroi covarde. E se acreditam, é porque investigo os olhos que me invadem. Uso sua força como me usam o artesanato pontiagudo. Nada sabe o que sou e ainda assim, há tantas certezas entre o amanhecer e o romper da tarde. Mas sou só selvagem, livre da culpa de ser de verdade. Vale o que sobre o chão construo, a partir de umas arbitrárias histórias, convenientes ao alarde. Não importa se na horizontal ou navertical, tudo parte e volta ao solo. Por isso desconstruo a forma, pois ela, com ou sem vida, serve ao poço de virtude de quem é mais eu em uma poesia, do que eu poderia ser. Nunca, jamais serei eu aqui, nem quando digo que amo, nem quando mato por prazer. Aqui é qualquer coisa de alienígena, excluído de meu corpo que logo se regenera, como um lagarto acuado, com sua cauda amputada. 
Aponte sua arma para o meu peito, e não erre o tiro. Há um alvo pintado nele, com dançarinas rebolativas indicando o caminho desejado. Sempre, por ser este corpo um número arbitrário, ressurgirá com o mesmo sorriso imutável.  Nenhuma coisa estranha e fluorescente aplicada na veia irá afetar o pensamento, nem os 4.000 "eu te amo" por aí despejados.
Se não é do agrado, coma menos, pois tem gosto de arame farpado. Se aplaudiu, se dormiu sentado, se morreu durante a encenação, ou se apenas ficou extenuado, é um problema de quem dissolve e disseca o que foi falado. E assim cansado, de discorrer sobre o improvável, retorno ao verso,
pensando que sou inventado,
sou mais de verdade que todo invento.
Poder acreditar, é direito sagrado,
e fingir que sou eu mesmo,
é minha chave para a saída desse inferno.



EDUARDO PAIXÃO
Enviado por EDUARDO PAIXÃO em 13/06/2012
Reeditado em 13/06/2012
Código do texto: T3722859
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