Entrevista com Manoel Bandeira

JOSÉ: Farto do lirismo comedido?

BANDEIRA: Não. Mesmo da hipocrisia se pode tirar algum verso.

JOSÉ: Então, diga lá, o que o distrai dessa vez?

BANDEIRA: Estou farto do cristianismo apóstata que usa bengala.

JOSÉ: Deu agora pra ser ateu?

BANDEIRA: Se leva esse nome quem não crê no corpo que vai ao pó e é restituído, sim.

JOSÉ: Cuida-te, isso é blasfêmia.

BANDEIRA: Também blasfemaram outros e ainda ocupam os mesmos lugares na sinagoga.

JOSÉ: O que precisas é caminhar, deixar que seu corpo experimente endorfina.

BANDEIRA: Sei. Pois bem, caminhei até o centro da cidade e a cidade estava parada no mesmo lugar, fui até o centro do centro parado da cidade e nada caminhava, parei no centro, vi o movimento apressado de tudo e nada fez mais sentido que retornar ao ponto onde eu mesmo disso tudo sabia parado.

JOSÉ: Caminhaste pouco.

BANDEIRA: O suficiente para pensar sobre joio e trigo espalhados pelas calçadas, sob as marquises, dentro e fora das lojas, nos dois lados da praça da igreja matriz de nossa senhora do perpétuo socorro.

JOSÉ: Não há descanso em caminhar pensando.

BANDEIRA: E que culpa levo eu se para sobreviver preciso por a cabeça sobre as cabeças e despi-la de chapéu e máscaras?

JOSÉ: Isso é o que quer pensar de ti.

BANDEIRA: Somos idênticos na dor, todos, aqueles que se dizem trigo inclusive.

JOSÉ: Que história é essa que o aflige tanto, vais me dizer que também despreza a parábola?

BANDEIRA: Amo parábolas, fábulas e mitos. Não me sinto incomodado com a parábola mas sim com um certo significado que atribuem a ela.

JOSÉ: Pois diga-la, explique-se para que o dito não fique sem ser escrito.

BANDEIRA: O que diz o verbo recorrente do nosso tempo? Que o Senhor ama o pecador mas abomina o pecado, certo? Como então o Senhor faria para separar, ainda na carne, o que seria próprio para a carne e o que seria perfeito ou à caminho da perfeição. Pois que vejo ser da carne a tendência natural para a decomposição. E a destituição da Glória está para todos igualmente.

JOSÉ: O que pretendes é confundir e não explicar.

BANDEIRA: Não. Posso estar confuso já que estar vivo é como caminhar na beira do abismo mas, como está no inferno, também aqui minha intenção é boa.

JOSÉ: Vá com isso que não tenho toda tarde.

BANDEIRA: É o caso de dizermos, nós os crentes, que amamos ao Senhor sobre todas as coisas e ao nosso próprio como se esse fosse nós mesmos. E como se não bastasse tratamos esse suposto próximo, no caso um pecador, com absoluta e irredutível teoria esquizofrênica cristã, e saímos por aí dizendo amo esse, amo aquele, mas ao outro não por que não se separa do pecado e não consigo separar com esses olhos que a terra há de comer o que nele é joio e o que nele é trigo. Que vá pro inferno.

JOSÉ: Mas...

BANDEIRA: E como poderia? Acaso os que se consideram mais trigo que joio já foram julgados como tal? Isso não faria mais sentido se acontecesse depois de mortos, enterrados e decompostos? Acaso a ressurreição não é prova de última instância da brancura das vestes do salvo no dia do Juízo?

JOSÉ: Trigo, vestes alvas...

BANDEIRA: Não continue para que minha vergonha não se multiplique.

JOSÉ: É que eu gostaria de dizer que...

BANDEIRA: Bem sei o que diria, seu amor é gratuito, porém exigente.

JOSÉ: e também que...

BANDEIRA: O que a subida do Gólgota ensinara ao Senhor parece-me justamente o contrário dessa bobagem. Não pediu nada em troca, não barganhou e nem foi subornado.

JOSÉ: Mas deves concordar que joio não é trigo.

BANDEIRA: Certamente, mas na campina, além dos campos cultivados onde o Senhor semeou o trigo, não há produção e o joio pode ser visto tão resplandecente ao sol como o trigo. A fome dos homens exige o sacrifício de alguns. E é na mesa, ao jantar, que a carne se satisfaz devorando o seu semelhante, descrevendo e demarcando o território da embriagues cristã apóstata. Não estou fardo do lirismo por mais comedido que seja, falta mesmo lirismo na praça enquanto a cidade pensa que segue em frente.

*

*

Baltazar Gonçalves

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 01/08/2012
Reeditado em 20/11/2019
Código do texto: T3807886
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.