[04h30 - O Tempo é de Borracha... Elastece?]

Daqui a um instante haverá luz... a julgar pelo canto dos galos já tecendo a manhã, daquele modo joãocabraliano, canta um cá... canta outro lá... e mais distante, outro galo apanha o canto deste e leva para outro [galo]... Será que o poeta perdia o sono... também?

Ao longe, ao largo da minha janela passa um trem; posso ouvir o ronco da locomotiva e a buzina rouca, como a de um navio. Cria-se assim, a distância impossível [sempre] de ser fechada.

É nisto que dá, dormir em horas erradas [existem?] e despertar só para constatar, pela milésima vez, o absurdo da existência, o gume cortante daquela ambiguidade essencial: tentar ser o que não sou, e, angustiosamente, não ser o que sou...

[Por alguma razão, os galos silenciaram, brevemente. E agora, são os cães a ladrar para a incompreensão do escuro... Sou pagão, e rendo culto à deusa Hécate dos Infernos... ela passa na noite, e os cães a veem...].

Agora, uma batida de porta de carro, um estrondo parece... algum vagamundo chuta uma caixa de papelão; eu, espetado aqui no alto, neste maldito apartamento [e todo apartamento É maldito!], posso ouvir o chiado do papelão na calçada. Voltando dos bares da noite, quantas vezes eu fiz isso... quantas! Na falta de poder chutar o vazio da vida, ou a gangorra neblinada da angústia dessa falta de..., eu chutava uma caixa, uma lata de cerveja [vazia, é claro, ou eu a beberia antes!]. Chutando coisas na madrugada, eu experimento, ao gume cortante, a minha solidão... e quem tentar entender isso, é mais doido ainda que eu... A pontapés, eu apalpo a solidão; eu a exerço enfim, ao olhar compulsivamente a lata, ou a caixa que estou chutando... será? Nada é... e tudo é!

Agora, sobrepondo-se à sinfonia dos galos [os cães se calaram, deusa já passou], canta um pássaro... trina o canto, repica, repete... a modo parecido com o de um sabiá? Não... é curió... é? Mas canta, e canta, sem parar. Insiste. É... constato que há alguma beleza nas coisas, nos seres, no mundo... [agora, o pássaro calou-se.].

Vou parar de escrever, e vou ligar a merda da TV. Deixar o mundo chegar a mim por outras vias menos belas, mais sujas, talvez. Mas enfim, mundo é mundo [meu].

Ah... e como todos sabemos, o tempo... oras... o tempo é feito de borracha... se elastece, se elastece tanto, tanto até levar a gente embora, apaga os meus rastros na poeira do caminho...

[Ao largo de mim, passa outro trem... me leva trem, me leva!]

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[Desterro, 04 de outubro de 2012]

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 04/10/2012
Reeditado em 04/10/2012
Código do texto: T3915135
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