DEPOIS DA MORTE DE MANUEL

- Este já está no nosso lado. Agora só temos que nos encarregar de o levar até junto do Jacinto…, pois ele quer ter uma conversa, pé de orelha, com ele.

- É verdade o Jacinto alertou-nos que a primeira coisa a fazer era levá-lo junto dele. Vamos embora porque nenhum de nós quer arranjar complicações com ele.

Manuel, logo após a queda na água, com o corpo já sem vida, apercebeu-se que Franco e Jeremias, pessoas que conheceu de imediato, estavam à sua espera. De imediato é resgatado do corpo e é levado para um espaço que chamam de trevas, nome que lhe foi dito, num riso de troça, e que era um espaço espiritual, desprovido de qualquer luminosidade, que se destinava a pessoas de baixa condição espiritual que têm que pagar por infracções cometidas em vida. É uma morada de espíritos que ainda estão envolvidos por uma imensa vibração de mal e que tem a ver com espíritos que cometeram acções de comportamento moral condenáveis em várias encarnações. Manuel estava revoltado com a autoridade de Franco e Jeremias:

- Mas afinal onde é que estou? Que local horrível é este? Para onde vocês me levam?

- Olha, olha, ainda não te deste conta onde estás? Julgas que estás na terra a gozar o bem bom e a enriquecer à custa dos outros? Lembras-te daquilo que fizeste ao Jacinto? Porque lhe encurtaste a vida? Precisaste de o enganar daquela forma e de lhe teres roubado tudo o que tinha?

- Vocês não sabem o que estão a dizer. Isso é delírio vosso. O Jacinto não quer o meu mal. Eu sei bem o prazer que lhe dei em vida e como ele estava contente com a nossa relação amorosa. Sei que ele não está interessado em me prejudicar.

- O quanto estás enganado! Foi ele que nos mandou buscar-te; foi ele que determinou que nos colássemos a ti e te levássemos ao suicídio. Mas basta de conversas que ele está à tua espera. Ele exigiu-nos que te levássemos logo até ele, assim que aqui chegasses. Mas já agora, pelo caminho, vai dando uma vista de olhos por este local magnífico porque vais gostar. Até parece um hotel de cinco estrelas como um daqueles que costumavas ir com a Eunice, outras mulheres e também homens, porque tu não eras esquisito. Nada mesmo…

Manuel pode perceber que se encontrava num local habitado por suicidas, homicidas e outras almas desajustadas, cometedoras de graves delitos. Ficou assustado com aquele ambiente dantesco. Agora compreendia o que na terra era designado, pelos católicos, como inferno, abismo, trevas. O cheiro a enxofre dificultava-lhe a respiração e a visão estava turba com a realidade que se avistava à frente dos seus olhos. Vários viciados se alimentavam daquela deplorável situação, em vários vales e áreas específicas. Vários sensações da sua carne sendo dilacerada, numa guerra de pensamento que lhe estava a dar tremendas dores de cabeça. Ao mesmo tempo uma sede insuportável e um frio que lhe invadia a coluna e o curvava perante aquele infernal espaço. Mais à frente passou por um extenso lamaçal com animais que nunca tinha visto e que se dirigiam a ele, como se quisessem tomar conta do seu corpo para o consumirem à vontade. Começou a ter grandes vómitos e a ter sensações da sua carne estar num avançado estado de putrefacção. Não se conteve e com o sofrimento que estava a sentir começou a chorar alto, numa atitude de desespero total.

- Não… Não… Isto não… Por favor, afastem de mim este pesadelo. Eu faço o que for preciso para sair deste maldito inferno.

- Agora já pedes, por favor, Manuel? Lembras-te o quanto eu te pedi que não me matasses.

Manuel, não queria acreditar. Ao ouvir aquela voz, soube que se tratava de Jacinto. Este, muito calmamente, aproximou-se mais dele. Fixou-lhe o olhar e com um ódio de morte diz-lhe: - Lembraste, do que me fizeste? Lembras-te da minha última frase?

- Sim, lembro-me, Jacinto, mas nunca pensei que o fizesses. Tu amavas-me e esse amor, chegou para me convencer que nunca me irias fazer mal.

- Pois mas tu estragaste tudo. Deixaste que eu tivesse convertido esse amor em ódio e sede de vingança?

Porque achas que sobrevivi aqui? Foi com o desejo incontrolável de te fazer pagar por aquilo que me fizeste. Andei anos e anos para me ambientar a este lugar, até ganhar adaptação e poder. Sabes que o poder existe em todo o lado. Enquanto na terra eu te ia deixando ganhar poder e mais poder, para depois saborear melhor a tua queda, aqui fiz o mesmo: - fui aprofundando alicerces e um favor aqui e outro acolá, pude ganhar esse poder de destruição da tua vida por completo. Não calculas o riso que dei quando te amandaste daquela ponte abaixo e como me sinto agora por ter a tua vida sob o meu total controlo.

- Jacinto, não! Pelo amor que me tiveste, pelos momentos magníficos que passámos juntos, não faças isso que estás a pensar. Não me tortures tanto. Não basta ter vindo para este espaço, tão próximo da crosta terrestre, sempre a mostrar-me lá em baixo o mal que lá fiz, para tu ainda aumentares o meu sofrimento?

- Não, não vou ter pena de ti. Quanto a mim isto ainda é pouco, comparado com o mal que me fizeste e a sede de vingança que acumulei ao longo de todos estes anos. Não calculas o que te está destinado. Andarás aqui em constante sofrimento e desejarás nunca teres existido. Mandarei os piores espíritos colarem-se a ti e alimentarem-se do teu extremo sofrimento. Do teu excremento, ouviste!? Mesmo neste espaço a que ouviste chamar de inferno lá em baixo, ou outras coisas ainda piores, em todos os locais, há situações melhores que outras, ganhas com alguma soberania como foi o meu caso.

Eu conheço isto de pernas para o ar e sei onde estão os piores espaços, aqueles onde há sempre trevas, povoados de dor, gritos de sofrimento, enfim, uma situação que vais poder descrever, atendendo a que vais sofrer isso na própria carne. Ao te dirigires para aqui já te enviei a sensação de uma pequena parcela do que vais ter aqui.

- Jacinto, por aquilo que mais prezas não me faças isso…

- O que eu mais prezava na terra era a minha vida e a vontade de a ter prolongado de outra forma. Adorava viver, como tu sabes e gostava imenso de mim, mesmo sendo homossexual. Tu estragaste tudo. Tiraste a beleza da vida, o romantismo que pode haver em coisas especiais e o significado da palavra amizade, partilha e amor. Ficou tudo isso na terra quando me tiraste antecipadamente a minha vida. Agora chegou o momento de acatares com as tuas responsabilidades. Está descansado que imaginação não me vai faltar para te castigar como mereces.

- Não, Jacinto, não faças isso. Deixa-me ao menos estar ao teu lado, para assim poder ser útil aos teus intentos. Prometo que não te vou deixar ficar mal…

- Sim, mas tu estarás ao meu lado, mas noutras espaços e locais bem mais difíceis. Mandarei as piores pessoas que aqui estão para se colarem a ti e não te darem um segundo de sossego. Nem imaginas o que te espera! … Não há qualquer argumentação que me demova desta vingança. Foi ela que me manteve todos estes anos.

Jacinto afastou-se de Manuel e deixou-o, por momentos, sozinho para que ele pudesse absorver, com mais pormenor, o espaço onde se encontrava. Pode constatar que o seu corpo continuava em sofrimento como se estivesse na terra, agora até aumentado, pois a dor era mais ampliada. Por azar ainda sintonizava milhões de espíritos imperfeitos, que partilhavam com os seres humanos terrenos, condições arrepiantes, entre ambos os lados.