Preciso escrever, é vital que eu escreva. Escrever como forma de dividir essa carga enorme que mal sei o que fazer dela. Quem sabe eu escrevendo consiga partilhar. Jogar na página essa dor descomunal que é a saudade. Tentar superar perdas é realmente um desafio. E quando essa perda implica em outras perdas, tudo se avoluma e como num jogo de cartas vai derrubando uma a uma, atingindo dimensões gigantescas. Perder é se perder um pouco.
        Bem, esse preâmbulo sombrio é para dizer: Tia Odília partiu. Cumpriu sua missão e voou. Mas, quem era exatamente essa mulher? Para falar dela terei que remontar ao meu passado.
       Volto à Vila Maia. Mergulho bem fundo nas minhas recordações. O casarão ainda conserva as paredes grossas, muitos quartos, salas enormes e uma cozinha quase embaixo de um parreiral que abriga um fogão com forno à lenha, um torrador de café e um cheiro de saudade de matar.
       A familia plantava café e viu a ferrugem dizimar os cafezais sem dó nem piedade. A era de fartura acabara.
Restou ela, quem sabe para apagar a luz. Ela que abdicou do amor para cuidar dos pais. Ela a mulher prendada, de gênio forte, sempre estava a me procurar sítio afora. Onde essa criatura se escondeu? Quem sabe pulando lajedos na cachoeira ou talvez procurando saguins na mata. Na volta, uma reprimenda, logo suavizada pelo doce de cajú ou pelos sequilhos feitos por sua mão de fada.
     Com a partida de todos, ficou aquela mulher de cabelos cor de fogo e memória pródiga a contar causos do passado com detalhes de espantar. Lembrava quando o cangaceiro Antonio Silvino " visitou" nosso sítio e "convidou" meu avô a visitar os outros fazendeiros da região. Falava das festas em Bananeiras quando as damas usavam vestido de seda, veludo e chapeus de palhinha floridos. Lembrava das eleições quando meu avô como chefe político alimentava os eleitores com uma lauta mesa de iguarias. O voto, já assinado, vinha direto para as urnas, protegidas por ele, sem nenhuma contestação. Era o famoso voto de cabresto. As mulheres da casa eram encarregadas da cozinha e os meninos e meninas distribuiam as sobremesas, geralmente doces e queijos.
        Aos poucos a familia foi minguando por morte ou por ter arribado para a capital. Odília nunca pensou nessa possibilidade. Ela dizia do alto de seus 98 anos. Quero minha casa, quero meu canto. Sentia falta até do pequeno cepo que a ajudava a se debruçar na janela para conversar com as comadres e compadres. Só dias atrás observei um detalhe, o cepo era tão peqeuno que só cabia um pé...
       A doença a trouxe para a capital. Todos se achegaram a ela como a agradecer o fato de ter resistido bravamente aos encantos da civilização. Dia à dia foi partindo como um passarinho. Lembro que a última vez que falei com ela foi perguntando. Quem gosta de pão assado e um dedinho magro levantou, voltei a perguntar, quem gosta de queijo do reino? Novamente ela acenou. Pediu muito para partir de sua casa. Nada feito. Os médicos não permitiram. Tinham que salvá-la. Mas, de que? Da vida cumprir seu curso?
        Hoje cá estou, desenraizada. Com ela foi minha história, meu passado.
        E, agora?