Domingo no cinema

Acordei cedo, passei a roupa que usaria logo mais com a precisão misericordiosa de uma freira dedicada, preparei algo rápido para comer e deixei sobre o fogão. Abri o chuveiro, tomei um banho demorado. Tirei a calcinha preta de rendinha francesa do varal e vesti, em seguida pus a indumentária, peguei um livro, liguei o ar condicionado e adormeci refrigerada sentada no sofá rasgado à espera dele, o novo objeto de meu amor, sublime amor... Ufa, chegou! E chegou fazendo estardalhaço com sua buzina-despertador infernal! Estamos juntos alguns meses,uns 3 ou 4,sei lá... Só sei que ele já fala em casamento e sempre disfarço, arranjo um assunto qualquer, falo do Vasco, do Flamengo, do preço do O.B e ele... Bem, ele abre um sorriso de Monalisa e me dá um beijo na testa(?) . Odeio quando faz isso, porque compreende tanto? Porque nunca tem um ataque de fúria e diz incisivamente o que quer? Mas não... Mil vezes um raio do que mostrar desespero e vontades, ele é tão cortês meu Deus! No caminho pro cinema vou falando de futilidades úteis e de Henry Miller, falo à exaustão enquanto meu doce e apaixonado acompanhante faz cara de paisagem morta e pergunta singelo: - Henry quem?

Tomada por instintos homicidas, chego pertinho de sua orelhinha e berro “– Miller, cacete!” Nesse momento meu fofinho esboça uma reação raivosa e pergunta se estou na TPM e se tomei meus remédios... Quantos anos ele realmente tem, 15? Será que não aprendeu que ao perguntar algo do gênero a uma mulher, a raiva tende a aumentar? Resolvi não responder, fiquei muda e refratária até a porra do cinema, que sinceramente, já tinha perdido toda a graça pra mim. Chegamos, olhamos meia dúzia de cartazes até escolher a fita. O filme é sobre um taxista israelense que leva uma jovem americana ao encontro de uma palestina, enquanto desvia de balas perdidas e achadas. Todos em nossa volta choram, menos eu e ele, que me abraça e me beija ritualisticamente. A situação alimenta em mim um desejo de sair correndo, mas é domingo e só tem merda passando na TV... Relaxo e peço que me deixe acompanhar a história,ele quer romance e me sufoca com lambidinhas e grunhidos de amor satânico. Levanto bruscamente,pego a bolsa da cadeira e vou embora,ele então me segue e segura em meu braço,me puxa pra perto e com o dedo em riste,apontado pra minha cara me acusa de falta de romantismo, mordo-lhe o dedo até os dentes trincarem,pareço uma leoa faminta na possibilidade de um naco de carne. Vou embora com a mandíbula dormente e com mais um “ex” na história de carências.

Rachel Souza
Enviado por Rachel Souza em 11/03/2007
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