Samba do grande amor

Abri os olhos e não vi. Pisquei, e não vi. Levantei e caminhei pelo negro corredor. Senti sede, mas não bebi. Senti fome, e não comi. Seria preguiça ? Fingi a dúvida. Não era, eu sabia ; não é, eu sei.

Quando terminei de andar, estava bem ali onde queria estar : o objeto mais perigoso à minha frente. E antes que eu pudesse pensar em que quer que fosse, já estava ele em minha mão, e já encostava ele em meu ouvido. Tocou uma, duas, três vezes, até que eu ouvi o sono disfarçado de voz perguntar 'alô ?'. Perdi a mão, o braço, o corpo inteiro, e nem sei como não caí. Só caiu a ligação. Mentira, eu desliguei.

A lembrança veio em ondas. Dentro de mim, desatinava aquela dorzinha deliciosa da nostalgia. Quando ela chegou, eu não tentei escapar, não inventei desculpas, me entreguei às habilidosas carícias do masoquismo. E não consegui parar de querer. Eu busquei, eu provoquei... Não consegui parar de querer. Era tudo que me restava do que eu chamava de minha alegria : aquela que já não era mais, aquela que tinha-se ido há tempos. O eco de sua voz ressoou por mais algum tempo dentro da minha cabeça, e depois veio o silêncio. Silêncio esse gritante, e tão grande que não coube dentro de mim.

No segundo seguinte, estava eu de volta ao lado dele, tão precioso, e os dedos viciados correram apressados pelas teclas de sempre. Fechei os olhos e prendi a respiração - que aquele silêncio da ausência da voz dela me sufocava por completo - e esperei. Uma, duas, três vezes, e demora. Quatro, e mais demora. Cinco, e nada.

Mais uma elipse e meu rosto febril era cortado pelo vento frio que corria pelas ruas. Corriam meus passos com ele. Fui pela madrugada mal iluminada por um tempo sem fim. O silêncio absurdo se fazia cada vez mais hediondo, impenetrável pelo som das botas no paralelepípedo. Nada, nada poderia detê-lo ; e nada me deteria pois.

Fiz o caminho como o teria feito de olhos fechados, quão tudo relacionado a ela fazia parte de meus hábitos. Cheguei sem perceber que tinha chegado. Olhei para a janela vermelha e os vi, não estavam lá, mas eu vi, ao mesmo tempo em que ainda via a mim mesmo com ela. Mesmas cores, mesmo lugar.

Escorreguei a mão para dentro do meu bolso aveludado. Ao deslizar o dedo pelo cano, senti o frio do metal atravessar a luva de seda que eu vestia, e me percorrer pelo braço inteiro. Deixei cair o cigarro e me direcionei à porta. Não precisei de campainhas – estas teriam sido inconvenientes – pois tinha comigo todas chaves de que precisava. Descalcei-me e entrei.

Logo o cheiro veio-me embriagar as idéias - mais nostalgia. Porém, não era o mesmo. E era muito claro o porquê : o ambiente não cheirava mais à fusão de nossos corpos, mas a do dela com o dele. Esse pensamento veio qual uma lâmina gelada perfurar meu estômago. Invadiu a minha boca seca, um gosto amargo e violento.

Sem rodeios, fui até a porta do quatro, abri, entrei. Senti vontade de acender outro cigarro, e contemplar aquela cena. Na verdade, tive, naquele momento, vontade de não ser eu, de ser apenas um espectador invisível com um cigarro invisível, de fumaça invisível.

Apontei a pistola para os dois corpos que só eram um, puxei o gatilho. Naquele momento, silenciou o silêncio. E eu descansei em paz.

19.03.07

Paula Peulaz
Enviado por Paula Peulaz em 19/03/2007
Reeditado em 18/06/2007
Código do texto: T418804