[A Captação do olhar]

[Por onde anda este meu olhar...]

Morena, vestida sem esmero, nem feia nem bonita, mas da pele firme, de uma lisura muito sensual, lá estava ela, sozinha, a me observar enquanto eu saía do carro.

Olhei-a, percebi a sua ligeira agitação, e pensei: uma mulher apenas interessante, mas dona de uma pele estranhamente sensual, e de uma vivaz animação em seus olhos miúdos, profundamente castanhos... O que haveria naquele olhar... que mundos, quantas viagens...

Ela pergunta-me alguma coisa sobre o meu carro; respondo-lhe assim, sem vontade, e logo, ela me convida a sentar à sua mesa, e a repartir com ela alguns goles da cerveja gelada, sua única companheira de solidão.

Por instantes, eu chego a pensar que ela se ilude, ou finge que se ilude,

[nada pude ler seus olhos], que a minha presença lhe será alguma cura. Mas, pela sua atitude descuidada, vejo que a ilusão foi só minha. Também... cura de quê?! Todos necessitamos de cura... indefinida sempre!

Suas expectativas, se é que ela tinha alguma, se desmoronaram quando eu sentei-me à mesa, mas recusei a cerveja... Nada havia a partilhar, nossas solidões são estranhas, excludentes. Ela demonstrou alguma decepção, mas guardou silêncio. Furtivamente, os seus olhos ágeis procuraram os meus, mas logo se dirigiram para o vazio da rua... teria ela detectado o Nada que trago comigo? Jamais saberei. Sei-me um alvo móvel!

E no tardio da noite, lá ficou ela, vestida descuidadamente, nem feia nem bela; uma mulher apenas interessante, e de uma pele morena, lisa, estranhamente sensual — muito, muito sensual... tive vontade de ler essa pele com os meus lábios, mas acho que eu não disse isto a ela!

Eu já me acostumei a essa captação ampla e rápida do meu olhar — sei que quase acerto no geral, e frequentemente, erro nos particulares. Mas, face ao absurdo da existência, não tem importância acertar, ou errar... no fim, estarei morto com meus erros e acertos.

E se alguma lucidez me assistir no meu último instante, sei que vou lamentar o fato de ter lido aquela pele apenas com os meus olhos, e não com os meus lábios... Vontade não cumprida: que merda! Mas... paciência... não terá sido o único momento perdido de toda a minha vida besta.

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[Desterro, 22 de março de 2013]

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 22/03/2013
Reeditado em 22/03/2013
Código do texto: T4202486
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