PARALELOS

Conheciam-se havia uma vida inteira.

O entrelaçamento do dia a dia tinha-os levado a conhecerem-se bem – uma espécie de destino que lhes misturava as vidas, fazendo com que tropeçassem um no outro com freqüência, nos mesmos acontecimentos mundanos, nas idas ao cinema, nas praias, nos choques de opiniões.

Se tal proximidade acidental não existisse, provavelmente procurar-se-iam e envolver-se-iam em uma amizade que, em termos práticos, nada acrescentaria às suas vidas.

Nenhum receava expor-se perante o outro. Coexistiam na profissão, conhecendo-se mutuamente os pecados e as glórias, os triunfos e os desânimos. Entre si, competiam até um pouco, de uma forma que ambos consideravam salutar.

Tinham tido algumas namoradas em comum, não lhes importando realmente quem as seduzira primeiro, ou quem primeiro as perdera. O seu diálogo sempre fora facilitado por um conhecimento comum daquilo sobre que dialogavam. E dialogar era algo que raramente lhes acontecia, algo que com facilidade dispensavam por desnecessário.

Cada um deles pensava no outro como sendo esse o mais forte, confiava implicitamente na sua proteção, e chamava-o na hora em que a sua ajuda era necessária. E nunca nenhum deles faltou ao outro, deixando-o desprotegido ou só, embora freqüentemente sentissem o impacto das suas vontades, uma contra a outra, demarcando uma fronteira esponjosa, elástica, uma terra de ninguém onde se entendiam na oposição.

Sempre foram tão próximos na força, tão iguais, mas tão separados nas capacidades, tão diferentes nos métodos e nas tendências, que, quando a vida lhes exigiu que sobrevivessem separadamente, descobriram com amargura, pela primeira vez, que um deles tinha uma nítida vantagem sobre o outro.

Era mais apto, menos atingido pelas arestas espinhosas da vida e pelas imposições do mundo dos outros.

Assim, em vez de se separarem, foi com a naturalidade de sempre que um deles assumiu uma posição de predominância, em um acordo confortável que lhes permitiu continuarem juntos- um deles ao leme das suas vidas, mais apto nos aspectos práticos das coisas, e o outro menos visível, mais protegido e mais livre.

O tempo foi passando, e eles mantiveram-se juntos e separados como sempre.

Ainda hoje, o acordo tácito prevalece, o mais lúcido dos dois timonando as suas vidas.

O outro morreu para o mundo, cobrindo-se de anonimato até obter a liberdade de ser um qualquer, como todos os outros. Os que lhe chamavam poeta já o esqueceram, perdidos nas incertezas de outras convicções.

De ambos, sobrevivi eu. E uma certa ironia, visível por trás dos olhos cansados, a que alguns chamam cinismo.

( da série " enquadramentos" )