INVENTÁRIO DA IMPOTÊNCIA EM BUSCA DO BELO

É muito difícil dizer com exatidão qualquer coisa sobre o campo das emoções. O que sinto não é matemática aplicada, mas um amontoado de sensações conflitantes. A cada instante as condições que possibilitaram compreender o que me cerca já fazem o contrário. Desse amontoado, algumas emoções dão-se à vista. É delas que pretendo falar, aqui faço inventário íntimo e pessoal do que aprendi vivendo.

Sou impotente perante minhas emoções, muitas vezes perdi o domínio sobre minha vida. Quando alguma coisa que faço, penso ou planejo é executada com perfeição fico contente e satisfeito como toda gente, mas a tal ponto que a satisfação se torna euforia e tocado pelo sucesso da empreitada eu me perco.

Quando sou bem sucedido diante de um grande público a euforia é maior ainda e a perda de controle é igualmente maior porque me sinto capaz. Quando me encontro assim, saio de mim, não caibo em mim e sinto que devo celebrar o momento, brindá-lo para fixar no tempo numa tentativa de eternizar o que sei ser efêmero. É quando perco o tesouro que queria guardar.

Sou impotente, fraco e perdedor diante do trago, da promessa de recompensa, da luxúria do sexo, do gole do mais saboroso destilado. É assim porque quero mais do que nunca basta.

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Se me perco para a luxúria, perco-me para a vaidade. É na ilusão de dominar a linguagem, na ânsia de comunicar a perfeição numa palavra escrita logro não perceber forma alguma porque a superfície das coisas se revela e logo muda rapidamente. Nisso há beleza, no belo me perco. Sinto-me impotente por não poder tocar nem fixar em estrutura de linguagem o sensível aos sentidos. Então escrevo para unicamente afirmar continuamente minha impotência.

Sou impotente ao que me mantém preso nesse retorno sádico, dolorido e sombrio e entrego-me na fuga das fugas: a arte de escrever. Mentir contando a verdade, recontar o mesmo episódio com roupagens diferentes. Assim busco o ardil perfeito e me perco porque o ardil perfeito não existe. Teimo em crer que o mundo é criado pela linguagem e que os deuses nos são revelados travestidos de demônios em espelhos.

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Sei da brevidade da vida, sou passageiro, uma rosa no jardim. Sou um clichê. Quanto maior o esforço para eternizar a passagem do tempo maior o descontrole. Perco o bom da viagem que é a vida. Vivo menos o cotidiano, o milagre do sorriso, a cria dos cachorrinhos, a alegria de um sobrinho que se casa, a chuva no fim da estação, a mudança de fase da lua, as eleições para presidente num país vizinho. Sou impotente porque pretendo ter o domínio dos elementos que compõem as configurações do momento. O passado é um peso morto e o presente pode ser insuportável. Sou impotente porque não abandono, não entrego, não permito. Não aceito os limites da minha força, os limites do que sou. Preocupo gerando estresse e ansiedade. Antecipo as possibilidades em vão.

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Por isso também sou impotente, não suporto o silêncio e a solidão. Não aquela solidão banal de quem reclama não ter ido a uma festa ou não ter um milhão de amigos. Temo a solidão necessária para ouvir meus pensamentos. Paradoxalmente o silêncio me deixa a sensação de não estar só de ser vigiado, observado, de ser enganado como a criança que acredita em tudo, em fantasmas e superpoderes, que basta fechar os olhos para que o mal se afaste. Sou impotente perante o silêncio por não acreditar que o silêncio absoluto exista. Na verdade, tenho medo de experimentá-lo e descobrir quem ou o que sou. Por isso busco a voz das coisas e imito a voz dos que não tem voz quando escrevo. Em tudo ouço uma vibração que chega em ondas até as cavernas interiores da alma. Ouço o som que emana das árvores, das cascas podres das árvores, das sementes das árvores debaixo da terra. Penso que meus pensamentos são como sementes enterradas. Então sinto o peso da terra, o peso do pó da terra. Sou impotente por não ter coragem de morrer um dia de cada vez a cada adormecer. E como se cada afirmação buscasse sua negação, seu duplo, percebo enquanto leio o que escrevi agora, que estar sozinho na leitura desperta a ira adormecida no meu coração. Volto minha atenção para o desejo de não estar só. Sinto a imensidão do caminho, a vastidão da estrada e o peso da solidão. Penso que viver é também suportar o escárnio, o desprezo e a injuria. Estar sereno talvez seja estar pronto sem o peso da bagagem e livre do medo.

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Não percebia que a multiplicidade de tudo à minha volta é o que me encantava. A imagem que faço é quase isso: enquanto meus sonhos se mantêm na antessala da mente, um menino parecido comigo fica sentado no escuro em meu lugar. O menino que fui um dia, desembaraçado e encantado por toda novidade do mundo. Um menino ingênuo e ávido de ciência. Penso que esse menino que está sozinho espera que eu me reconcilie com o Tempo, que me convença da simplicidade e me religue aos liames da espiritualidade que estavam desconectados.

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Sou impotente diante da dor que o outro sente. Se é fome, eu cozinho. Se é dor, eu busco remédio. Se é tristeza, eu trago o riso fazendo troça da desventura. Pesando as palavras do evangelho aprendidas desde pequeno, fazer para o próximo aquilo que gostaria que fosse feito pra mim é pretensão covarde. Essa atitude minha é insana porque quando pretendo mudar o mundo, ajudar a todos e estar em todos os lugares, o desejo de ver o mundo a minha volta menos injusto é pretensão de covarde porque não mudo nada, não mudo a mim mesmo. Atolo-me na frustração, não sei diferenciar caridade de auto-piedade. Padeço de uma espécie de “Síndrome de Francisco de Assis”. Impotente porque não posso resolver o problema das crianças mutiladas pela guerra em Angola, não posso saciar a fome dos velhos moribundos no deserto de Nairóbi, não posso resolver os problemas que as drogas trouxeram na vida de bilhões de pessoas. E me sinto fraco por isso, como se eu devesse realmente ser responsabilizado. Desgasto-me quando meus esforços vão além dos limites da saúde, ofereço o que não posso dar e esqueço-me de mim. Então sinto-me como as crianças angolanas, os moribundos de Naerobi e os dependentes químicos do mundo todo. Esqueço mais uma vez a oração que diz: Mestre, fazei que eu procure mais: consolar que ser consolado, compreender que ser compreendido, amar que ser amado. Pois é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado e é morrendo que se vive para a vida eterna. Não faço como o santo de Assis, quando dou é para receber. Quando me despojo é em busca de recompensa. Ilusão, dou esperando receber obediência. Perdoo quando me sinto vítima, perdoo quando ninguém pede. Escondo-me atrás da aparente humildade de quem perdoa quando na verdade é arrogante e espera ser perdoado, ser amado.

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Sou impotente porque tenho medo do escuro absoluto, da comunicação com o espírito dos mortos. Assombra-me a possibilidade da presença real de Deus. Neguei a existência de um deus por medo de desintegrar-me na Sua presença. Perco a sanidade quando tomo consciência da minha pequenez e da solidão que isso representa. Passo a ser entrada e saída de mim mesmo e isso é tremendo: é acordar dentro do sonho e de novo acordar, ver-me sonhando e ainda não ter acordado. Viver talvez seja acordar ininterruptamente. Sou assombração e assombrado, um sonâmbulo. Tenho medo de encontrar outros sonâmbulos e isso, apesar de tudo, é o que me impulsiona a seguir acordando.

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A perda de controle da vida aos olhos das pessoas gera é incômodo. A perda de controle da minha vida aos meus olhos se revela na inconstância de tudo que faço. Isso sou eu. Hoje vivo alerta, vigiando na expectativa que essa vigília possa manter-me, dia após dia e um dia de cada vez, mais distante do núcleo que gestou o ciclo vicioso de acordar e acordar na zona de conforto. Com tudo isso, eu aprendi que perder o controle significa que não há retorno. No entanto, admitindo minha impotência percebi e aceitei que o inferno é impossibilidade; nada mais. Aprendi que o medo pode ser minha força e que estou no caminho que é o meu caminho. Aprendi que o murmúrio das ondas revela a beleza do oceano profundo.

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Baltazar Gonçalves

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 20/04/2013
Reeditado em 20/11/2019
Código do texto: T4251302
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