Noventa e três estranhas realidades
“O resto da alcateia estava se aproximando
E foi necessária uma saraivada de brasas para afastá-los”
(Caninos brancos, 1910: Jack London)
Fechei o livro, termino outro capítulo, a estória vem crescendo... Na mente
Conduzida pela mão de um artífice... Quem é aquele que paira entre ratos e homens?
Sob o imenso telescópio, Von Däniken confabula: “Eram os deuses astronautas? E nos apresenta sua tese...
O vento sopra e ele flutua, flutua e inala os aromas de Süskind
Flutua porque é incompleto, é John Steinbeck dominando a sua ira
Colhendo uvas, flutuando nos campos, sobrevoando ilhas...
Inalando com o nariz de Gogol os cheiros mundanos, os cheiros dos oceanos
Quem é aquele outro cantado por Savok que vai depois de Roberto Piva e passa...
... Passa antes de Walth Whitman; eram noventa e um e tiveram suas vidas narradas numa novela de Heinrich Böll
Fagundes Telles, Cecília Meireles, João do Rio...
Pairam agora, pairam no ar como folhas secas, lembrando-me Kafka naquela manhã surreal
No “Livro do Desassossego” encontrei Pessoa, “O Eu profundo e outros Eus”
Metamorfoseio na Tabacaria; onde o vento levará minhas velhas folhas agora?
Pelas frias terras de Tolstói? Lembrei-me de Fernando Sabino, num brinde:
“Uma vida”, era a de Guy de Maupassant, era a de Clarice Lispector, Mary Shelley, Saramago, Willian Blake e John Keats
Todos estáticos na grande estante do Universo... Dinâmicos nas mãos
Scott Fitzgerald, Andre Breton, Samuel Becket e com eles me encontro
Pelas noites, depois de entorpecer-me de literatura e poesia, vago cambaleante...
Pelas linhas, pelos títulos, temas, pelas capas duras, duras são as horas...
Que nunca virão... Já não encontro o meu Quintana, às seis horas não chegam
Éramos como vagabundos... Qualquer hora, qualquer lugar; não mais...
... Como Kerouac ou Charles Bukowski, Rimbaud e Baudelaire
E, nessas andanças descobri que ninguém sabe recitar os poemas de Maiakóvski
Nesse mundo utópico de Orwell, só os iguais tornam nossa vida imperfeita
Só nos restam as “Memórias do subsolo”, só me resta lembrar Dostoiéviski
No mundo de Borges “todo romance é um plano ideal inserido no domínio da realidade”
Dura realidade descrita no “Diário de um ladrão”, a cara de Leminski
Fiquei sabendo que outro se foi; Jean Genet, candidato a santo, blasfema e não quer perdão
Willian Golding o “Senhor das Moscas” na ilha perdida, como um estrangeiro em terra desconhecida
Observa Camus que também não quer perdão, decidido a fazer a sua última revisão; do processo
Entorpecido pelo calor, Meursault matou um árabe na Argélia e fugiu como um lobo na estepe
Herméticos, Le Fanu, Dickens, Flaubert, Poe, Brontë e Lovecrafth... ... Hermann Hesse ouça-me... Estou desgastado, coberto de pó, mas podia ser pior
Podia ser Henry Miller passando fome na Cidade Luz
Poderia ser Tchekhov e estar congelando na Sibéria
Podia ser Darcy Ribeiro fora da tribo, João Ubaldo fora de Itaparica
Poesia improvisada, novelas curtas, vernáculos e retóricas
Vinícius de Moraes, Rubem Fonseca e Conrad na linha de sombra, linhas que parecem trilhos
Piso em terra fertil... Vejo Voltaire cultivando, nela, o seu jardim; lugar remoto, dentro do meu corpo brota Nelson Rodrigues
Brota Drummond, Manuel Bandeira, estranhamente, Lima Barreto se move no meu fígado, pelo álcool, carcomido
Euclides morrendo de calor nos Sertões, aonde o vento não pára
Nas veredas, vento quente, entra-me um cisco, um cisco que me cega, arranha e me fere...
... Cambaleio, ferido como Cony em Pilatos, ferido como Gray quando se destruiu o mágico quadro...
... Maldade de Mr. Wilde; que foi, por mim, engolido sem a malícia dos versos de Dylan Thomas
Éramos dois, éramos uno; éramos “O médico e o monstro” de Robert Louis Stevenson
Éramos dipsômanos e estamos no “O teste do ácido do refresco elétrico”, somos Tom Wolfe
Sem perceber penetrei em você pela boca... Como Cervantes penetrou pelos olhos
“A ópera flutuante” penetrou nos ouvidos de Barth...
... Conhecê-la-ei por dentro, descobrirei suas entranhas, aguardo o chamado...
... “O chamado selvagem”, ouço o lobo Jack London uivar para a alcateia
Noite passada, depois do uivo, acordei; antes, estava sonhando com Ginsberg
Sonhara com Percy Shelley, Quincey, Byron... A Loba e o Caolho no Wild Ártico, lutando pela sobrevivência
“Viajantes numa noite de inverno”, barco Ariel, eu e Adams, “Caninos Brancos”
Atravessando o mediterrâneo à procura de Victor Hugo, éramos tão miseráveis
Carregando somente “O guia do mochileiro das galáxias” e um Calvino sem capa
Mas tínhamos “Sangue-frio” do jeito de Capote, e enfim chegamos ao funeral
Não era de Pirandello, não foi o de Matias Pascal...
... “Ninguém escrevia ao coronel”; morreu de solidão, contou-nos o fato, Gabriel
De longe, “Fogo Pálido”, pude ver Nabokov se aproximar ao lado de Waldo Emerson
Tínhamos um “Encontro Marcado” com Hélio Pellegrino, um “Bilhar às nove e meia”, com Eco e Lúcio Cardoso, Sumerset Maugham só tinha seis vinténs
Ouvimos “O sino”, suas badaladas cresceram, nos despertaram para o horário, e Iris Murdoch já vem chegando...
... Pé na estrada e chegaremos pela manhã no “campo de centeio”...
Era 1984 e Salinger capturava as almas que do penhasco saltavam
Saltei... Flutuei, minha alma flutua... Sagarana! Fui capturado...
Vocês fizeram parte do meu mundo e juntos compomos algumas canções para Brecht
Eu fazia as letras e vocês caprichavam nos refrões
Tratavam-me como cúmplice e agora somos um, esperando na plataforma esse “Bonde chamado Desejo”
Hora de irmos; adeus Machado de Assis, adeus Fausto Wolff, adeus Thomas Hardy!
Vou acenando, me despedir de Emily Brontë apesar de viajarmos na mesma composição
... Ah, Tennessee! Vou fazer de tudo para não ser, como num vômito, expelido desse vagão!
Virgína Wolff vai ao lado, não se assuste; Quando entrarmos no túnel, só feche os olhos e toque o meu coração!
*Homenagem a Savok Onaitsirk e sua obra “91 caras”.