Sublime Banalidade Devastada

O tempo é feito de um número infinitamente grande de camadas das quais cada uma possui a força bombástica de um momento maravilhoso ou terrível. Essas camadas estão mais próximas uma da outra do que as alamedas no chapéu de um cogumelo, portanto todos os momentos do passado e do futuro se encontram a disposição, ao mesmo tempo. Entre duas camadas ainda surgem mais níveis, formados pelas correntes causais de acasos desprezados, possibilidades não realizadas, e alternativas eliminadas. E, assim, os andares se amontoam em velocidade e expansão alucinadas, transformando-se em uma massa folhada que cresce cada vez mais, e que nada parece conter. Procurando seu caminho, nossas consciências perambulam constantemente para lá e para cá, entre os andares mais próximos, e nisso acaba produzindo uma diminuição de acuidade que nós somos capazes de suportar na medida em que a acreditamos para a notória incompletude de nossa memória e vidas. Se alguém chega demasiado longe em determinadas camadas estranhas e incompreensíveis da alma, acredita estar perdendo o chão debaixo dos próprios pés. Se cambaleia, cai e não encontra mais o caminho de volta, e correrá em pânico como se nada estivesse acontecendo por aí, e não reconhecerá mais nada de forma acertada e familiar?!! Nada mais se ajusta a nada, nada mais faz sentido, e então vamos nos deitar para recuperarmos nossas forças para o próximo nada do dia seguinte. O espaço é uma ilusão pomposa desse parque de diversões letais, desmedido de nossas percepções está contido em um único ponto; Nosso ser cego escrevendo cartas, narrativas gigantescas e cansativas, jornais saindo do forno das desgraças individuais e coletivas, como se houvessem fatos reais nesse mundo. Nós mesmos desencaixamos o espaço como se fosse os bastidores de um livro infantil, e o motor dessa criação gigantesca é a pressão da diferenciação, que nos coage a buscar o contrário de todas as coisas que já nasceram às avessas. Nenhum ponto ou superfície, nenhuma insignificância sem distância. Sem o grande também não haveria o pequeno, o alto não existiria sem o baixo, a beleza sem a feiura? Conceitos, tudo são cadáveres ambulantes e infindáveis de conceitos. A diversidade necessita de um lugar para ramificar os tentáculos de suas ilusões, e o mundo se enche a si mesmo como balões de uma festa de aniversário? Mas o que estamos festejando? O nascimento do início de nosso desaparecimento, a prostituição de nossa inteligência e tempo em prol de denários e mais denários? Então tu perguntas: "como o homem pode ser mesmo parte essencial de um ponto, e continuar nesse jogo de casualidades e de crenças insuportáveis e ocas?" Não o é. Nunca o fomos.

Uma faca pode cortar tudo a não ser ela mesmo? um pé pode chutar tudo excluindo ele mesmo, um dedo consegue apontar tudo e todos a não ele mesmo, assim como um juiz pode condenar quem quiser mas se absolve de si próprio? Minha faca, meu chute, meu dedo e meu juiz cortam-se, chutam-se, apontam-se e condenam-se para si mesmos. Quando contemplo meu rosto no espelho, quando cismo acerca de minha própria consciência ou quando me pergunto "quem eu sou", sempre fica para trás uma porta que não consegue abarcar a si mesma, não consegue nem tocar em sua própria maçaneta. Em algum lugar dentro de nós está este minúsculo e último pedaço que sempre volta um passo quando nós pensamos ter conseguido alcançar um olhar em seu mero plasma_ porém são os pedaços e os buracos que há em nós que nos vigiam, que nos espreitam. Há tanta pouca coisa importante que se pode pensar? A vida é cheia de banalidades, é construída com base nelas, pois banalidades eram o material de construção, a principal argamassa, tijolos, cimentos e rebocos. Mesmo diante da morte somos obrigados a fazer coisas banais, como tirar o fio do telefone da tomada, a fim de evitar que a gente mesmo quebrasse uma promessa divina. A vida se tornou numa cisterna vazia de esperanças, não há mais nenhum costume ou ideia que pela qual a alma pudesse se alegrar, ou encontrar um consolo? Sempre há, mas a verdade é um peixe que sempre morre quando o retiramos do mar ou do aquário de suas própria ilusões em que nadavam e viviam. O passado é uma família, um amontoado de seres isolados e distantes, que a gente amava ou lamentava por não ter feito algo diferente? Talvez todos fossem atormentados pelos sustos das cobaias de laboratório que nós somos, com o fato de uma delas não ter se retirado a tempo para morrer pela sua própria vontade, mas sim ter escolhido justamente o ponto central do experimento por pura covardia ou coragem? A partir de sempre nós não telefonaremos mais depois da luz da ambulância, nós prometemos ao universo com certeza isso. Pouco importa com que bandeiras de alegrias ou candelabros de luto a existência se enfeitava com suas dietas, com suas receitas, com seus discursos, com suas festas e músicas hipnóticas_ a vida nunca deixará de ser banal.

Trago para o interior de meus pulmões um último fôlego da guimba do cigarro em meus lábios, e lanço-o no corpo da criança de cinco anos de idade, morta por um caminhão de gasolina, e que está estendida aos meus pés; seu corpo inflamável é um macrocosmo sublime e horrendo, pois ali me vejo e encontro todo o sentido da vida: mal o resto do cigarro toca no cadáver da criança, pega seu corpo fogo imediatamente, as chamas atingem o véu de todos os cernes dos céus, como se ali fosse iniciado um novo pacto com os deuses mortos de nossa civilização digital: chuto o corpo da criança para o abismo do universo, e ouço os gritos das estrelas, dos planetas, das galáxias, dos buracos negros, dos múltiplos universos, de toda a existência se contorcendo de dor e de angústia ao verem seus corpos despidos sendo consumidos em chamas sadistas pelo corpo da criança que lhes chutei na cara, e tudo se evapora em uma gota de cinza que se enforca entre os limoeiros do meu quintal. Todo esse vômito que algo ou o Big-bang jorrou para todos os lados está enfim limpo, tudo está completamente alvejado, plenamente incinerado, e o nada volta a dormir sossegadamente em seu jazigo abstrato. Tome um pouco de leite e depois vá logo dormir com seus mortos insepultos.

Gilliard Alves
Enviado por Gilliard Alves em 03/08/2013
Reeditado em 03/08/2013
Código do texto: T4417316
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