QUERÊNCIA - PROSA E VERSO QUE A ESTRADA ENSINA.
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       Digo de pronto meus patrícios, que um velho tapejara, se não poetiza nos conformes, não tem tal pretensão. Prefere colher as prendas depois do tropel de estrelas, qual diamantes fixas no céu. Há um estouro na noite, e a estrela boieira amadrinhando a lua, vai campereando o infinito. Colhendo da safra dessas prendas multicores, que não são por desfavores, que se vão pela manhã. Pela mão da madrugada é que se vão. Já sem muito atropelo, a estrela grande boieira é como fosse sinuelo, para que não se percam nos rastros, e logo à noite... voltarão! É tracejado do Patrão do Céu. Só esperam os abichornados pela melancolia, que buscando as reminiscências desta vida,  marcados com ferro e fogo em seus flancos: pelo amor, ou desdém de uma bela china.
       Uma prenda por mui bela, perto ou na lonjura, faz um taita repontar estrelas, com juras ao luar!

                                        

       Um velho tapejara vaticinou quando ainda eu era guri, que "seria um dia na vida, um taita, saindo igualzito ao pai", assim, movo minha pena, embora fraca, carecendo aprendizado e ser domado para a lida.
       Há quem diga que não deva, pôr o flete nessa estrada, atilhando palavras pilchadas de sol e calor.
       Fala uma velha chirua, que faz rima de trovas, até com Y, Z e K, que: " Se as minhas palavras não rimarem, como um 'taita e uma china enforquilhados num cavalo' - não adianta chê - é como caldo de galeto, acaba de relancina e não mata a fome do galgo que teatina, para lá e para cá, em sua cina.
                           
                                 

       Fiquei a cismar comigo: - Minhas rimas não tem métrica... são limas que não afiam aço? Senti no velho peito um pontaço. Patrão do Céu! Me acuda a desenrodilhar o laço! Me ensine num galopaço em meu requeimado alazão, que Tu és o Senhor dos Pagos: do saber e da razão.
       Na corrimaça desses traços, finquei o espeque da intenção: - Vou mostrar p'ra velha China, que se alvora formada em Letras...ao enfim...Diz que foi o latim popular a mãe de nosso idioma. Isto é sim! Flor do Lácio, do vulgar latim. 
       Lhe mostrarei que não sou guacho, tenho mais que o idioma - não careço chapéu de penacho - tenho meu jeito de pensar, tenho cá meu axioma. Tenho um relampejar de sotaque, que aumenta meu falar. Tenho um riso ancho de alegria dentro de mim mui guasca, como patada de potrilho, em pau ferro que não lasca.
       Vou casar letra com letra, palavra entropilhada com palavra. Compor uma estrofe bem sonora, qual ave canora e outra e mais outra até o fim. 
      Vou casar melhor que o taita e a china. Vou me casar com a mais bela prenda, a Albina. Bem alourada, estudada, filha de gente fina. Mostro pois que para matrimoniar não basta ser um taita, tem que ser macanudo! Para se casar: - "Hay que tener vocación, mantener el casamiento hay que ceder su corazón".* (
///.///.S@//tos)
                                       
        
       
- "De assim, fiz a metáfora da Albina"; para firmar que não me descaso com a prenda, nem me faz importância levar um pito, pois eu rimo à contenta, só não metrifico, porque existe o verso em prosa ou prosa em verso, poetizar em prosa, prosear poemizando, tropilhando palavras bonitas, para os olhos, alma e coração. - Enaltecer a poesia é minha maior emoção. Digo mais: escrever não é querer é vocação. 
       
       Que seria do branqueamento dos versos mais queridos de: Pessoa, Bandeira, Cecília, Drumond e Mário "Menino" Quintana, este que ressoa, um poeta de vasta projeção e ardor, gaúcho de alma, nascimento e coração; o mais querido que já pisara o sagrado solo tapejara deste rincão; plantando uma cruz falquejada em sua última morada, de poesias, amor e calma. Escreveu versos branquinhos como sua alma!

       Tantos, escreveram versos brancos, versos livres como Quero-Queros que voam  nos pampas, no capinzal e gramal  das campinas... E gaviões campeiros flanando nos campos e nos planaltos, tão longe e tão altos...
Voam porque voam.
       Se nos meus versos falta um pouquito ou de imenso o mate verde, não é por falta de palavras belas como prendas donzelas, paramentadas de chita e rendilhas, sela de brilhos de prata no alazão; as que descem da serra, para ir à bailança no grotão.
       
      A La cria, aprendi repontar palavras, nos pagos de imagens de meu pai, que deixou as sementes avoengas enterradas lá nos pagos de Bagé. Eu cá, nasci em cidade que foi pousada de gaúchos, que de Viamão seguiam à Sorocaba. Tatuí ficava no meio dessa tropeada. Pois foi onde eu nasci.

       
                                 
        Pequenote, cresci na selaria, sentindo o cheiro dos couros, dormindo em cima de pelegos, ouvindo da gauchada rimas e cantares, aos pagos, às prendas, xinas e xinocas; aos cavalos seus maiores apegos, pontilhados de querências e saudade. Ouvindo os falares, expressões e interjeições bem campesinas de meu pai com a peonada, regada de quando em quando, não mal entropilhando, com seu amigaço Olívio Palhares no violão e "seu" Abreu na 'gaita'3, num relancim noviço, aos moldes lá do rincão, uma ou outra porfia de pajador, alí na sapataria e selaria do velho, entre cinco ou seis olhares cativos... que nunca faltavam, às vezes aumentavam. Pois olhe, a peonada os chamavam de 'Mano-Juca'5, e aplaudiam sapateando.

       Que me lembro, das porfias, eram sempre os motes: "Por Causa Que", "Ninho De Geada", "Tatu"** e "Napeva" este último mote, também era o nome do cãozinho lá de casa, que não era mui pexote.
       
       Se nos versos e nas rimas sou devedor bastante; reconheço. "Devo, não nego, pago como posso".

Tenteio com couro cru a sina de escritor e ponho sinuelo adelante da tropilha, para que não me perca nos rastros de um coração vercejador.

       Ala pucha chê! Pois há quem diga como a velha china, "que só se vale enquadrinhar... Se seus versos não tem métrica ou rima, tudo é... menos poetar!" - Pois olhe; isso tolhe os versos macanudos dos taitas e tapejaras, que pontilham o céu literato. Daqueles que pilcham estrofes mais belas que prenda ao se casar.

       Se a velha diz: - Bah! Não são versos, são arremedos.
- Só de trovas ir vivendo tenho meus medos. Mais ainda ela diz: "somando trovas encimadas é que se desfaz o arremedo, e surge um poeta trovador."

       Poeta é quem enxerga para dentro, não carece ter perdido um amor ou sofrer uma dor, nem ter sempre uma régua na mão para metrificar, metrificar... Até: - "Atar a cola lá onde a Maruca prende o grampo" .

       Pois olhe, acho que sou deveras um proseador, e que me achasse só isso, já estava mui bueno. Ainda mais: contista e pensador, de lambuja; é o que dizem! Mas sou queixo-duro e redomão, não sou nenhum galreador, conheço os rumos do rincão. Faço a poesia que entendo e me faço entender. Sou peleador da prosa e das poesias, um posteiro a zelar de campo e galpão e das cercanias: - As poesias, não se olvidem, dão pontaços por baixo do poncho no peito dos abilchonados, adelantando pôr-de-sóis.¹

       Mas se me abrem a porteira da QUERÊNCIA e das estâncias, não me fazem caretas as distâncias. Monto meu alazão-requeimado, que tenho por apartado, com seu pêlo cor de canela, ruivo quase tostado. Vou de coração aquebrantado, semeando por estradas, planaltos e serras minha prosa, num estilo redomão.

       Há umas almas penadas, que calculam ser mui macanudas,  em cujas "penadas"  até que rimam e estrofilham, mas da obra não sai nada. Não são urdidas com tento. Não tem sumo de sustança p'ra temperar um bom charque-de-vento.4

       Tudo nos trinques, rima, cadência, divisão silábica, rítmo, métrica, número de estrofes, classificação poética, estilo e escola. Mas não tem alma no corpo. A alma está penando por aí. São andejas pedindo esmola.

       "Cada macaco no seu galho" já diz o ditado popular. Mas meu galho é escrever e ler bastante - nunca é o bastante. Uma árvore tem muitos galhos e acolhem todos os amantes, da literata língua mãe. A que Bilac escreveu e nosso coração agradeceu:

"LÍNGUA PORTUGUESA

Última flor do Lácio, inculta e bela,
És a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Ame o teu viço, agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio da ventura e o amor sem brilho!"

*Deixo para ti que me leres até o fim, dois poemas bem a jeito, com sincerro² e de vereda, para que tu leias (se quiseres) em voz alta inflando o peito:

"DA QUERÊNCIA
Querência é aquele rincão
onde empeçou a existência,
o amor e a imaginação.
É o rodeio da consciência
presente ou em recordação.
Fogão nativo... Na ausência
ainda é mais forte a querência
cinchando no coração..."
(Aureliano, Romances de Estância e Querência;
 2ª ed. P.A., Martins, livreiro-Editor, 1981. p. 143)
.




"MATE BUENO
de gosto amarguento,
de erva batida
na concha da mão,
de bomba de prata
chapeada de ouro,
de cuia cozida
com cinza e carvão.
Mate gostoso,
cevado de novo
recém escorrido,
ainda espumante,
que a gente tragueando
se sente contente
e esquece um momento
a gaúcha distante
Mate que encerra
em seu gosto esquisito
o mesmo amargor
da saudade febril
que vem da lembrança
de uns olhos profundos.
Mate que lembra
os ervais tão bonitos
que vivem da seiva
do imenso Brasil,
- a terra mais fértil
das Terras do Mundo !!!
(Lauro Rodrigues, Minuano,
P.A. Globo, 1944, p. 29).


** TATU (Curiosidades) :- Minha cidade natal, Tatuí-SP, na Língua Caigangue,  ramo dos Tupis, que habitaram grandemente a região (hoje restam dessa nação 3.000 em todo o país) - significa "Água dos tatus" - i (y ou j) = água e tatu. Maior curiosidade é que é que no R.G.S, Tatu, -  é uma variedade de fandango, com inúmeras quadras sobre o tatu, que os pares (na dança) entoam ao dançarem:

O TATU: 
Eu vim pra contar a história
Dum - tatu - que já morreu,
Passando muitos trabalhos
Por este mundo de Deus.

O tatu foi muito ativo
Pra sua vida buscar;
Batia casco na estrada,
Mas nunca pode ajuntar!

Ora pois, todos escutem
Do tatu a narração,
E se houver quem saiba mais,
Entre também na função,

- Anda a roda,
o tatu é teu;
Voltinha no meio,
o tatu é meu! -
.....................................
[E assim prossegue a bailança indefinidamente, cujo versejar
gaúcho e muitíssimo fértil...]


1. O mesmo que pôres-de-sóis // plural de pôr-do-sol, usado no R.G.S.
2. Cincerro - campainha grande colocado no pescoço de fêmeas de cavalos, - madrinha, a cujo som todos os outros a acompanham, mantendo-se sempre reunidos.
* Frase em espanhol, construída a propósito. No R.G.S. de fronteiras: com o Uruguai e Argentina, fala-se um tanto quanto bilingüe, por causa das cidades que se aproximam, ou mesmo se dividem por ruas e avenida. Ainda quer seja, pela introdução de membros familiares de origem castelhana e vice-versa. Quando não, incorporaram ao falar gauchesco muitos termos desses países: Buenas, Buenas tardes, Bueno, Mala suerte, Querência, muitos diminutivos, galopito, solito, tardezita,... e outros cordeona, pago, de ansí , adelante, etc...
3. Gaita - o mesmo que cordeona, sanfona ou acordeon.
4. Charque preparado para o consumo das estâncias, constituído de mantas finas, com pouco sal, SECADAS AO VENTO. É muito saboroso, porém, pelo pouco sal, tem curta duração. (Pl.: Charques-de-vento).
5. Mano-Juca, - Tratamento gaúcho que se dá aos homens do campo, os que peleiam jornadas campesinas, que tem ares de rústico, por extensão ao um tropeiro, tropeador. Pau pra toda obra no campo e nas estradas. 









 
Mauro Martins Santos
Enviado por Mauro Martins Santos em 01/09/2013
Reeditado em 26/10/2015
Código do texto: T4461431
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