O inventário de uma vida!

A primavera está prestes a explodir em cores,espera apenas pelas primeiras chuvas , que a natureza sabiamente, faz florescer vidas em abundancia á nossa volta .

Os pássaros aguardam os filhotes eclodirem dos ovos com uma sinfonia maravilhosa anunciando novas vidas em ciclos de nascer crescer e bem alimentados, empenados a voar dos ninhos em busca de novas vidas e formarem casais para a roda da natureza retornar.

Assisto tudo isto de minha janela da velha casa , no andar de cima onde tenho uma visão panorâmica da natureza lá fora .

Nesses dias claros , bem limpos os ipês amarelos colorem a paisagem como um grande tapete destacando do verde forte das outras árvores do cerrado.

Este ano o meu ipê , talvez tivesse florido, se não tivessem cortado seu tronco, num assassinato cruel, em nome do progresso que eu não gosto nem um pouco , mas como tudo na natureza tem o seu tempo, tive que fingir que está tudo bem para seguir o curso da vida .Seus troncos e galhos ainda verdes teimam em continuar vivos com flores amarelas estendidas no solo , como a suplicar para não serem definitivamente mortas.

Imagino-me como aquela grande árvore que já deu sombra , flores viu meus filhos crescerem a seus pés brincando sempre a balançar á sua sombra, e agora há pouco havia meus netos , repetindo as brincadeiras dos pais .

Tudo tem começo meio e fim, é inevitável, mas eu particularmente preferiria não ver o fim de nada ,mas vou ser forte como sempre, não vou chorar.

Prefiro acreditar que é um novo ciclo em minha vida , assim como na primavera tudo renasce, vou tentar renascer, em outra casa , sem jardim sem os pássaros , sem a visão da natureza pela janela mas levando todas as lembranças no coração.

Assim absorta em meus pensamentos , sorvendo o chá que Corina serviu-me ,vou imaginando toda minha estória , de frente para trás e trás para frente, como num gira gira , exercício recomendado pelo médico, que esteve a visitar-me a poucos dias .

Muito educado e moço ainda , para ser médico de velhos ,eu lhe disse em tom de amizade , já que estávamos nos vendo pela primeira vez.

Ele me foi indicado , pois acordei certo dia sem saber direito ou quase nada , onde estava quem era .

Aos poucos fui recordando,mas assustei meus familiares que decidiram que não poderia mais viver longe deles .

Então o jovem médico , bem falante , iniciou , creio eu uma consulta , em forma de bate papo , para melhor se inteirar da minha saúde .

-Então dona Eliza faça um inventário de sua vida ...relembre coisas boas, esqueça os maus momentos ...planeje...sonhe ou melhor , coloque tudo no papel, ou computador ...-melhor ainda , gosta de escrever?

-Faça um inventário de quem a senhora é..

--Os amores , aventuras , desventuras ,coisas do seu tempo , deve haver um baú cheio , embaixo desses cabelos cinza, não é mesmo?

Quanto entusiasmo daquele jovem ,era bom sentir aquela energia que emanava dele e tinha um perfume suave em suas mãos quando examinava meus olhos, senti de novo prazer de olhar de perto um jovem saudável, perfeito exercendo sua profissão.

Enquanto ele falava ,corria os olhos pela estante de livros ,como se procurasse algum para que pusesse me indicar .Encantou-se pela grande foto da moça sorridente, cabelos cacheados montando um maravilhoso cavalo branco o qual tinha suas rédeas seguras por mãos fortes ,do jovem mulato, peito aberto , num corpo rijo, esguio tanto quanto o animal.

Ao fundo um grande casarão que poderia supor a primeira ,vista uma fazenda de café.

Sei que ele nada sabia a meu respeito, pois dizia coisas que assim fazia-me acreditar.

- A senhora ainda não respondeu nenhuma pergunta ...-gosta de escrever ?

Nesse instante entra Corina ,com uma bandeja e parada a porta disse em tom em seu linguajar repreensivo: -ora doutô essa é pregunta que se faça a ela ?Com sorriso meio amarelo ele não entendeu nada, mas nem poderia...

-Tome um café doutor , sinta-se em casa, temos muito que conversar ...

Fiz sinal de silencio para Corina que entendeu e saiu da sala.

Fiquei a reparar aquele rapas , poderia ser , um filho meu , cheio de energia querendo conquistar o mundo ou talvez muda-lo, como eu num passado distante .

-Caro doutor ,por ora meu mal acredito que seja mesmo pela idade que avança , ando um pouco esquecida é só isso .

-Agradeço sua atenção, mas sou apenas uma pessoa comum , que viveu bem até aqui e nada além disso, simples assim...

-Muito bem espero estar fazendo o meu melhor para senhora , vou deixar a receita com sua ...

-Eu disse rápido

-minha irmã...

-Ah! sim?- sua irmã...

Assim prescreveu ,os medicamentos, despediu-se , bastante intrigado, mas nada disse.

Corina o acompanhou ,casa afora resmungando baixinho como fazia sempre, em seu palavreado misturado ao mineiro com sotaque de quilombolas dos confins das Gerais ...

-(Imagina num cunhecê a Eliza e vim cunsurtá ela , onde já se viu...

O jovem médico ouvindo os lamentos , estacou na soleira e indagou da boa e amiga companheira Corina :

-Senhora Corina diga-me por favor quem é esta inigmática sua patroa , que não tive o prazer de conhecer antes ?

-Doutô a me descurpe , mas se ela mesma num quis dizê, num sou que vou falá.

-O senhor procure pelo fio dela ,se ele quizé lhe conta .

Assim intrigado e um tanto encabulado afastou-se do grande chalé , com a duvida de onde poderia ter visto aquele rosto da senhora Eliza.

Meses se passam, o noticiário , entre tantas outras informações comunicam que o grande chalé , da escritora e ativista dos anos de chumbo , foi transformado em local para tombamento histórico, já que sua proprietária havia se retirado para tratamento de saúde.

Todo acervo estaria em breve para visitação e estudo , pois valiosos objetos ,documentos ,de uma época sombria , livros de poesias ainda inéditos , foram doados ao Estado, devidamente chamada a casa da Borboleta Azul.