Lendas urbanas e pesadelos urbanos

Oi, querem saber meu nome? Não importa. Querem saber quem eu sou? Isso também não importa. Basta que escutem meu relato que começa com um pesadelo, um sonho triste...

Eu já tinha tido aquele sonho várias vezes, mas nunca tinha dado bola para aquilo. Até que da última vez a coisa foi tão real, quer dizer, parecia tão real, que eu não tive como escapar. Tive que rememorar várias vezes durante o dia e até contei para a minha namorada.

-- Triste sonho, angustiante...Estive como que morto, mas alguém que eu conhecia me chamava, insistentemente. Então eu acordava. Mas já era tarde. Já tinham me enterrado. – Completei eu.

-- Que horrível, que horror... - disse a minha namorada.

-- É sim... – Confirmei eu.

-- Mas você acordou do sonho? Ou sabia que estava sonhando pelo menos?

-- Não. Era um sonho, mas era real também... Uma dor no peito, uma angústia...

-- Credo.

-- Só sei que agora decidi. Quero ser cremado quando morrer. É meu último desejo.

-- Por que? Ficou com medo de te enterrarem vivo?

-- Não. Fiquei com medo do meu espírito voltar para o meu corpo já morto e eu me transformar num morto-vivo...

-- Que isso?! Isso não acontece não!!

-- E por que tantos seriados mortos vivos na TV?

-- Isso é ficção. É uma lenda urbana.

-- Viajar para a lua também era ficção.

-- Não vai me dizer que você acredita nisso?

-- Não acredito nem deixo de acreditar...

-- Vem cá, me dá um beijo meu morto-vivo charmoso... – disse a moça jogando-se nos meus braços.

-- Minha linda. – afirmei eu, beijando-a.

Dois dias depois eu estava morto. Não tinha dado tempo de eu avisar para a minha família que meu último desejo era ser cremado. Hoje sou um morto-vivo, descanso na minha cova, pacientemente, vejo minhas pústulas de sangue serem comidas vagarosamente pelo tempo...

Porém não pensem que sou infeliz. Eu sonho aqui na minha sepultura. Durmo e acordo. O pior é que é sempre o mesmo lugar. Nada muda. Mas um dia eu vou acordar e ver que era um sonho, um sonho triste, angustiante. Se eu acredito nisso? Não acredito nem deixo de acreditar...

Um dia vieram exumar o meu corpo. Eu não queria assustar nenhum deles da perícia. Fingi-me de morto. Fui um perfeito cadáver. Ninguém notou meus leves e suaves movimentos, acharam que era rigor mortis.

Quando todos os testes já tinham sido feitos resolveram me colocar de novo no caixão. Eu, como bom morto, não me mexi. Deixei que enterrassem-me pela segunda vez.

Esse morto vivo é mais morto do que vivo, poderiam pensar vocês... Nada disso... agora que me exumaram e já fizeram todos os testes... agora que vão me deixar para a eternidade aqui... agora eu posso sair e ninguém vai dar pela minha ausência.

Mundo, aqui estou eu para a minha pós-vida de morto vivo!!!

Quebrei o caixão e cheguei até a sepultura, cheia de terra. Levantei e fui andando para fora do cemitério. O que eu vi não era nada animador, as pessoas continuavam suas vidas, não se importando com a minha presença. Confundiram-me com um mendigo doente e esfarrapado. Eu era mais um dos muitos invisíveis da cidade grande.

Só quem me reconheceu como um morto-vivo legítimo foi um garoto de 10 anos que estava acompanhado dos pais, tomando sorvete. A criança aproveitou-se de um momento de distração dos pais, para me inquirir.

-- Moço, você é um morto-vivo?

-- Como você sabe menino?

-- Pelas pústulas de sangue... tem na série de TV...

-- Você é muito esperto. Mas não conte para sua mãe não. Nem para o seu pai.

-- Eu sei. Eles pensam que você é um mendigo, não é?

-- É isso aí. – disse eu, piscando com o resto do que eu tinha de olho direito.

Fora essa pequena aventura, nada de reconhecimento. Ninguém diria que eu fosse o que eu sou. Depois de muito vagar pela cidade resolvi voltar para o cemitério e para o meu caixão. Afinal, não se tratava de um morto-vivo, no caso eu, mas de muitos, centenas, milhares, bilhões de mortos-vivos, a humanidade inteira.

Mauricio Duarte (Divyam Anuragi)
Enviado por Mauricio Duarte (Divyam Anuragi) em 23/09/2013
Código do texto: T4494994
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