Poesia realista
Um dia falei de amor. Como quem fala com propriedade. Um dia escancarei a dor. E expurguei toda maldade. Hoje sou apenas estatística. Entre tantos brasileiros. Hoje não consigo mais rimar. Ou dizer o que sinto. Hoje não sinto nada, aliás. Alma oca, quase fugaz. Rendi-me à rotina, ao cotidiano, às horas mal-pagas. Enterrei a poesia. O corpo, comprimi em demasia. Será que isso já ocorreu com os céleres? Aqueles mesmos que inspiraram minha infância? Hoje deixei de ser sábia para ser operária. Hoje o realismo tomou-me de tal forma, que canso os dedos ao poetar. Palavras não matam a fome de ninguém. Manchetes vendem mais que romances. Não há mais tempo para as cóleras, os eufemismos, as prosas dilatadas. E os versos, então? Nem se fala. O que é mesmo um soneto? Quem é que faz, hoje em dia, um dueto? Só cantor. Mas não é dueto, é dupla. E eu que perdi minha alma lusa. Camões nunca mais. Literatura é disciplina escolar. Filosofia, matéria de vestibular.