Ex-meninos

Ex-meninos





O que aconteceu que de uma hora para outra, um pai de família, um trabalhador, um profissional liberal ou simplesmente um possível e pacato ocioso se converte num assassino?

Na porta do bar, nas dependências de uma farmácia, no interior de um banco, nos arredores de um supermercado, numa praça abandonada, no estacionamento de um shopping, na entrada da casa, na portaria do prédio, o que aconteceu com os ex-meninos que, num repente muito louco, tiram a vida dos outros?

O que aconteceu com a vaquejada, a pelada, a carambolada, a rapadura, o dominó, o palitinho, o par ou ímpar, o papagaio, a jangada, a cesta de frutas e o papel pardo pra viagem, a grama molhada e o topo da goiabeira? Derreteram-se paulatinamente graças ao repetitivo som do estilhaço, do estampido da pólvora, do corpo tombando, do pranto dos pais e dos filhos, do histerismo das sirenes, da confusão dos participantes e da convulsão dos longínquos?

Teriam sido, alguma vez, meninos?

Que fenômeno macabro, insidioso, traiçoeiro, epidêmico, é esse que converte o potencial no terminal, o ser no sub, o autêntico num cacoete de gelar a alma, de onde vem isso?

Da meninice? Ou da falta dela?

E por que é que de uma hora para outra todos somos culpados e executados sem direito a um júri e um julgamento, a uma anedota que seja, a uma última reflexão?

Será uma veia que irrompe no cérebro, um mau trato no coração, uma falsa alienação, um parâmetro corrompido, um ódio sem inteligência que leva mentores biológicos ou de ocasião ao desastre dos ex-meninos, será culpa da televisão, da professora, das mensagens subliminares, dos colegas, do clima, da marca do desodorante ou de todos?

Porque afinal todos morrem.

Que poção é essa cozinhada em qual caldeirão que transfigura um semblante que já foi doce numa máscara que em dois segundos determina o fim do existir? Em que cartilha está escrito – e quem leu essa cartilha – que a morte covarde é um esporte a ser não apenas praticado como cultuado?

Quem foi o gênio que inventou esse traste
que não rouba só o presente como também o que viria pela frente?

O que fizeram com esta nação, que não está em guerra por honra, sobrevivência ou território, mas dia a dia continuam banhando-a com sangue, um mar de sangue, vermelho como sangue, vermelho como aquilo que ilude, roubando sanidades, talvez precárias, instaurando calamidades, quem são esses que apertam gatilhos como pastam os burros e voam as moscas, como detê-los, como interromper esse fluxo, como reverter esse estado e se não revertemos vamos deixar o que? E o que é que estará escrito na lápide?

Faltou-nos nada, somente a infância.



(Imagem: Marina Zherdeva)


 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 17/02/2014
Reeditado em 10/05/2021
Código do texto: T4694909
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