O que eu não contaria nem se o sol desandasse

Se a mim fosse dado contar uma história de amor, os expectantes saberiam daquela que fez o sol sair em rota pela lua, tão precisado de sua única e intransferível face iluminada e reflexiva, o outro lado escuro, inóspito, incompreensível, eternamente jovem.

Eu falaria, talvez, da dupla contando a netos e cães (ou arvoredos ou fogueiras de quintal) umas aventuras – estas, também, outro tipo de história de amor, que eu precisaria inventar... (Criando-as, o contador de histórias emudece e elas, sim, é que ganham voz – e que tom!: mágico, rouco, de largo e antigo alcance, havendo até quem aposte em eternidade.)

Se por acaso triste me sentisse, diria dum desamor. Então recuaria de meras palavras para explicar desencontro, justo que prefixos de semântica contrária não cabem em histórias de amor de verdade verdadeira.

E, ainda que só e em paz e aparente alegria – dessas alegrias falsas contadas por não ter o que fazer senão enganar passantes com alegria falsa –, relataria o estranho caso dos enamorados que confiaram no relógio da vida. ('É tão grande o risco, Pandora... Larga ao vento a esperança, Criatura!', mas os deuses disseram nada disso à mocinha curiosa, desleixada, es-pe-ran-ço-sa...)

Sim: eu demonstraria por 'a' e 'b' outros romeus e rosalinas, que julietas são supérfluas; dulcineias são apenas símbolos do feminino rançoso, amor mesmo era entre o cavaleiro e o moinho... E tem bruxa que ama de verdade, também, mas sufocou na fogueira, e esqueceu como é sufocar e amar, e faz feitiço mas não se enfeitiça, porque nem sabe mais a diferença...

Ah, eu contaria histórias de amor, ora, se...!

Mas não escreveria a minha história de amor, não... Nem a encenaria, ou, sequer, a engarrafaria por mares abertos, carta inspiradora a ser lida, em dia muito longe, por um náufrago, uma criança, uma dama romântica.

Pois que minha história não me pertence: é dos beijos e abraços que fiz, das noites e dos dias – quentes, imberbes, tonitroantes, tanto faz! -, das horas assorbebadas, saboreadas ao som de outro sangue - que corre fora do meu corpo - que expande meus pulmões e alma e pelos, em peregrinação tardia, sempre renovada, exsudada, aclamada, conquistada, como se fosse guerra, sim: ao vencedor, as batatas das pernas, para mordidas, lambidas e passeios abaixo e acima, estandarte em riste.

Então, se a mim fosse solicitado contar uma história qualquer de amor, diria à plateia inclusive aquela do passarinho com sua flor – a minha, definitivamente, não.

Essa restaria quieta, segredo de polichinelo, criança inocente que cria malícia para ser notada - como toda história de amor deve ser - e lida, feito o caso do sol que perdeu o rumo e agora passeia calma e diligentemente em busca da perene e intratável companheira - oh, histórias de amor contém gente assim, porque 'história de amor' é de aceitação, não de perfeição.

O resto tudo eu contaria suave, digna e serelepemente.

Gina Girão
Enviado por Gina Girão em 25/03/2014
Reeditado em 26/03/2014
Código do texto: T4743034
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